Sou descendente de mineiro

Ana Luisa Balbão
Revista Subjetiva
Published in
3 min readFeb 20, 2020

Para o brasileiro é unânime: se gabar pela descendência. Eu sei, somos um povo carente de história e buscamos constantemente o que valida nossas origens. Todo povo precisa de uma. Uma vez perguntei para meus avós maternos quais são as descendências deles e meu avô, com seu jeitinho peculiar, foi bastante enfático:

- Vô, você é descendente de que?

- Mineiro, de Monte Santo de Minas.

Errado ele não está.

Já minha avó fala que tem descendência indígena. Conta que o avô foi encontrado no mato, amarrado, e acaba aí porque ninguém sabe muito além disso. Sobrou a fisionomia, mas a história foi apagada. É parte do que sou e também parte do que todo brasileiro é.

Eu e minha vó Manu

Somos um país-colônia que teve seu povo praticamente dizimado e aprendemos a olhar para o passado com o olhar de fora. Sabemos pouco ou quase nada sobre nossa história além dos últimos 500 e poucos anos. Crescemos, então, como um povo carente de identidade.

O presidente do Brasil, há menos de mês, disse: “índio está se tornado ser humano, como nós”.

Então, me diz, quem somos “nós”?

Refleti sobre essa realidade quando li sobre o pastor Ricardo Lopes Dias, nomeado pelo governo Bolsonaro para chefiar o setor de índios isolados da Funai com o objetivo de converter indígenas ao cristianismo — que vai contra a constituição. Além de também ir contra ao dever da União de demarcar as terras deles, protegendo e fazendo respeitar todos os seus bens.

Ricardo Dias é filho de Edward Luz. Se você não viu, deveria ver o vídeo em que um funcionário do Ibama prende Edward que tentava impedir o instituto de fiscalizar uma terra indígena no Pará. Ele é pastor e presidente de uma agencia de missionários que cristianiza índios, que inclusive já foi acusada de escraviza-los.

Essa é a Terra Indígena Ituna-Itacá que está sob fiscalização do Ibama contra invasões e desmatamentos. Apesar de ainda não estar demarcada, conta com proteção e restrição de uso pela presença de indígenas isolados. O MP fala que, com essa nomeação, é “nítido conflito de interesses e desvio de finalidade, risco de etnocídio e genocídio dos povos indígenas”.

Calculo que fazem mais ou menos 520 anos que esse é um problema no Brasil.

Isso foi no Pará. No Mato Grosso do Sul, na Terra dos Guarani Kaiowá, a comunidade luta há mais de 10 anos pela terra deles que está sendo usada para o plantio de cana por uma indústria criminosa. Sofrem constantes ataques armados, também morrem pelo afastamento da terra e do plantio, morrem pelos agrotóxicos lançados no ar e na água, e morrem pela destruição da natureza que fornece o alimento.

São condenados à miséria.

Isso é no Mato Grosso do Sul. Em São Paulo, a região do Vale do Ribeira abriga a maior área continua de Mata Atlântica. Lá existem duas terras indígenas já regularizadas. Além delas, o Ibama identificou mais nove áreas indígenas que ainda estão com processo de demarcação aberto. Com a eleição de Bolsonaro, a expectativa dos produtores é não sair das terras, pois o presidente já prometeu que não vai regularizar nenhum território indígena em seu mandato.

Não dá pra negar, ele vem cumprindo. Bolsonaro não teve nenhuma terra indígena demarcada no seu governo, mesmo herdando 54 terras já julgadas e prontas para demarcar. Nem mesmo as decisões da Justiça Federal foram suficientes para avançar esses processos. Inclusive, é a primeira vez que os processos de demarcação de terras indígenas andam para trás. Processos com estudos técnicos finalizados chegaram na Funai e são devolvidos.

Se nos governos anteriores o processo era lento, agora caminhamos para trás há passos tristemente largos e rápidos.

É simples: não sabemos quem somos.

Exploramos a terra como se não fosse nossa, violentamos o nosso povo como se não fizemos parte dele. Somo um povo com problemas de identidade porque acreditamos que somos as capitanias hereditárias e não as mais de 1.000 tribos que aqui existiam.

A gente precisamos ser, pelo menos um pouco, os Guarani Mbya que resistem e ocupam o terreno da construtora Tenda em protesto contra derrubadas ilegais de árvores nativas do espaço.

Precisamos ser, pelo menos um pouco, os 250 povos indígenas que ainda sobrevivem e resistem há mais de 500 anos.

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