Sr. Basílio

Tandra
Revista Subjetiva
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6 min readApr 17, 2018

O dia começou com a mesma cara de todos os outros, não muito esfuziante, tão pouco melancólico, apenas mais um dia normal comum a nossa rotina. Como qualquer outra manhã eu era encarregado de entregar os pães no asilo para o café. Como qualquer outra manhã após entregar os pães eu me dirigia ao jardim que ficava nos fundos do asilo para falar com um paciente em especial, o senhor Basílio.

O senhor Basílio é um velho peculiar, Inteligente, culto, bonito até, esguio, acredito que quando era jovem fora um galã daqueles de cinema americano. Ele também é bastante engraçado, embora não se achasse com essa graça toda, na verdade seu mal humor patente faria qualquer um duvidar da minha afirmação. Mas, eu gosto dele, gosto de suas contações histórias, ele é um verdadeiro Forret Gump, apesar das lembranças lhe falharem na memória.

Ele estava, como de costume, sentado no banco observando o pé de lichia começando a dá o fruto.

— Bom dia senhor Basílio — nunca recebi mais que um aceno positivo de cabeça como resposta, hoje não foi diferente

— viu que dia lindo? —continuei — olha esse sol…

— e isso é bom? não gosto de dias ensolarados, eles prometem mais do cumprem.

— Ah meu amigo, os dias não são oráculos. É só não crias expectativas

— não crio expectativas, simplesmente não acredito em nada que brilha demais a ponto de ofuscar nossos sentidos

— mas, o…

— já te contei a história da Elis? — interrompeu-me

— não, qual Elis?

— a mulher que desgraçou minha vida

— eita! essa o senhor não me contou, posso me sentar aqui? me conta isso direito

Acenou consentindo

— existia essa mulher, Elis. De cabelos ruivos ondulados, tinha lá seus vinte e poucos anos e eu já passava dos trinta e cinco. Já era homem vivido, casado, com três filhos. Tinha minha vida boa, uma esposa boa, uma casa boa, um emprego bom. Mas, esse era o problema, era tudo bom, apenas bom, bom bom. Nada de extraordinário. Até que surgiu essa mulher

— ela te enfeitiçou?

— não, não, pior… Era toda inocente, delicada, precisava de proteção. Não tinha ninguém para defendê-la, pelo menos era assim que eu a via

— hum, e o senhor todo garanhão foi la cuidar dela?

— a princípio não, me mantive na minha, na linha. Minha vida não era ótima, porém, também não era de se jogar fora. Tampei meus olhos, me fiz de cego, contudo foi em vão. Mas, você sabe como é, tudo que não pode brilha no escuro. Quando dei por mim, ela já estava ali, na minha frente e eu era incapaz de desviar o olhar. Foi tão forte, foi tão vivo, pareceu-me tão certo fazer aquilo, que chegou um momento que apenas parei de resistir.

— e ela? também se sentia assim?

— pior que sim. Eu nunca fiz nada que atentar-se contra meu casamento e de repente lá estava eu, buscando motivos para ir até a biblioteca municipal, ela trabalhava lá, apenas para vê-la

Pausou, observando o vento dançar com os galhos da árvore

— continue — o incentivei

— tinha uma cafeteria ao lado do trabalho dela, eu tomava café todas as manhãs ali e nunca havia reparado em nada, quem entrava, quem saía, nunca. Dai um dia, que parecia ser como todos os outros, chovia muito e os buracos da rua faziam poças d’agua, acredito que ela tenha se distraído e não viu que um carro passava a toda velocidade, ele a molhou praticamente por inteiro. Eu como cavaleiro corri para ajudar, não havia reparado nela especificamente, teria ajudado qualquer pessoa naquela situação. Ela também não era uma moça que chamasse atenção de imediato, era necessário um pouco de observação para reparar que seus traços eram bonitos. E posso te contar? — chegou mais perto do meu ouvido, como se mais ninguém pudesse ouvir e prosseguiu — era ali que morava o perigo, de tanto observar não se conseguia parar mais.

Fez um longo silêncio enquanto olhava vagamente para o jardim a sua frente,

— bom, vou tomar meu café —disse fazendo menção de que iria se levantar

— perai, calma seu Basílio, o que houve esse dia ai que ela ficou toda molhada? a Elis, o senhor estava me falando que um carro passou em cima de uma poça d’água e jogou toda água nela, e depois o que houve?

— ah! sim —voltou a se ajeitar na cadeira, depois de alguns segundos olhando o horizonte retomou a fala — na verdade o mais importante foi que depois daquele dia não consegui parar de pensar nela. Ela tinha um olhar penetrante, uma beleza peculiar, havia nela a extraordinariedade que eu tanto buscava

— então vocês tiveram um caso?

—sim e não. Só que só a parte do sim.

— o senhor disse que era casado, sua esposa descobriu?

—calma meu jovem, não ponha a carroça na frente dos bois. Ainda vou chegar la, Mas sim. Isso desgraçou minha vida.

—perdão, sou todo ouvidos

—lembro do primeiro beijo. Nem parecia que tinha larga experiência em beijos. Modéstia a parte eu sabia encantar uma mulher —disse me cutucando com o cotovelo, até acho que piscou para mim, depois prosseguiu

— não sei como explicar o que aquele beijo me fez sentir sem parecer um desses maricas molengas que se vê por ai. Porém, estava completamente apaixonado. Entregue. Totalmente sem rumo e sem a menor vontade de encontrar

—paixões efêmeras beira a vida do homem constantemente — eu disse a ele — eu tive uma namorada, mas eu pisei muito na bola com ela, não respeitava nosso relacionamento, tive outras mulheres, eu era um merda

— e porque você fez isso? Foi pelo prazer, pelo gosto de se fazer ?

—não, não foi pelo gosto, foi pelo efeito. Mas, isso é conversa par a outro dia, como eu disse fui um imbecil e não é minha imbecilidade que está em pauta aqui e sim sua. Termine de me contar por favor

— ok, o que falavamos?

— da Elis e sua paixão por ela

—ah! Sim. Era amor na verdade. Amor verdadeiro. Ela era a ligação mais forte que eu tinha com meu lado bom.

Não estaria de todo errado se dissesse que o vi lacrimejar o olhos, embora não tenha chorado. Ele lutava para se lembrar, quando a lembrança vinha na memória a saudava como uma velha amiga, que não muito íntima ia e vinha.

— Decisões são tomadas e temos que aprender a lidar com as consequência, é assim que acontece —voltou a falar — nossa tarefa é combater o presente e saber lidar com o que repercute no futuro. Eu combati. Perdi minha família e nem sequer lembro se valeu a pena.

Seu Basílio estava há três anos no asilo, ele sofre do mal de Alzheimer. Nunca vi nenhum conhecido seu vindo visita-lo. Certa vez perguntei se os filhos dele viriam, ele disse não saber dizer se tinha filhos. Eu não sei sua história, e a parte que ele me conta é assim, cheia de falhas, sem nexo e continuação, mas sei de sua alma, há um homem bom ali, de coração batendo em constante nostalgia, não sei se sua memória é inteiramente confiável, contudo eu fazia questão de todos dias ir falar com ele, mesmo que me contasse sempre a mesma história. Parece ser a única que ele lembra com paixão nos olhos, e eu não poderia tirar dele a emoção de conta-la e até vivê-la como se fosse a primeira vez, de novo e de novo…

—Conversar com o senhor é sempre um grande aprendizado, obrigado por me contar sua historia, se importa se eu tiver que ir agora? preciso voltar ao trabalho

—vá meu filho, vá… depois vou te contar a história da mulher que desgraçou minha vida

—eu vou adorar ouvir. Até breve

Já próximo a porta que ligava a casa ao jardim, não pude deixar de ouvir uma senhora de cabelos esbranquiçados, perguntando por um tal de Sr. Luvre

—senhora, talvez eu possa te ajudar, quem procuras?

—eu procuro o Sr. Luvre?

—Luvre?

—Basílio, Basílio Luvre

—ah! O Sr. Basílio, está ali, ao lado da lichieira, a Sra é a… ?

—Desculpe, sou Elis, uma velha amiga. Obrigada pela informação.

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Tandra
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Nem sempre escrevo tudo aquilo que sinto. Mas, sempre sinto tudo aquilo que escrevo.