“Tenha bom senso” e o terrorismo social dos apps gays

Repensando a relação entre dispositivos móveis, redes e dores

_erinhoos
Revista Subjetiva
6 min readNov 15, 2017

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Eu, por um lado, acho lindo, lindo mesmo essa potencialidade das novas tecnologias de gerar vínculos a partir de índices como afinidades e contiguidade espacial. O Tinder e o Happn, em especial, permitem esse tipo de mágica; as variáveis “afinidades”, “faixa etária” e “espaço” são conjugadas — de modos distintos a depender do software — de forma a otimizar os elos entre usuários. Cultivam-se aí, em redes implícitas, conexões até então impensadas mas relativamente óbvias, o que é genial.

O corpo, dentro de sua forma estilizada e padronizada pelas referências comuns de apresentação no formato desses softwares, parece figurar com protagonismo nesse universo de estabelecimento de redes. Ele adquire centralidade dentro do conjunto de marcadores fundamentais desses aplicativos (idade, afinidade, espaço). As representações de nós mesmos encarnadas pelas fotos dos corpos aprofunda e orienta o estabelecimento das conexões, dando forma e sentido social às redes. É aí, quando o corpo entra e representa, que aquela beleza da solidariedade instantânea evanesce e dá lugar muitas vezes à aspereza da empáfia e da arrogância, da efeminofobia, da gordofobia e da dismorfia corporal, do classismo e do racismo passivo-agressivos.

Aliás, acho de uma criatividade incrível esse mundo gay digital marcado pela performatização do anonimato e pela corpolatria: aquilo que offline é considerado algo do mais íntimo, que é a nude, na interação online passa a ser a moeda de troca oficial para viabilizar qualquer aproximação. O ponto de partida da construção das nossas personas passa a ser o mosaico de partes do corpo que trocamos pelos apps, e o erotismo deixa de se definir pela romantização daquilo que é visualmente sonegado e passa a operar a partir da representação estilizada de partes do corpo sexualizadas.

A questão do erotismo apenas começa aí. Não existe nada mais repugnante que o terreno árido e fascista que se constrói em termos de valoração de pessoas em alguns apps, sobretudo o Hornet, o Grindr e o Scruff (a comparação se baseia nas funcionalidades presentes em um design básico, que também se repete em diversos outros aplicativos). Dentro desse quadro, já pesaroso em função de todo o legado corpólatra da nossa socialização gay, com o cultivo de ideais individualistas e de uma estética do pornô viril, parece que esses softwares portáteis se converteram em verdadeiros legisladores da dignidade afetiva e erótica dentro da comunidade, o que aprofunda severos problemas mentais relacionados à auto-estima e relação com o corpo e os afetos. Conforme nos diz Michael Hobbes em The Epidemic of Gay Loneliness,

A pior coisas sobre os aplicativos, creio, e por que eles são relevantes para a disparidade de saúde mental entre homens gays e héteros, não é simplesmente o fato de que os usamos demais. Mas sim o fato de que eles são quase perfeitamente desenhados para salientar nossas crenças negativas sobre nós mesmos. Em entrevistas conduzidas por Elder (um pesquisador que estudou estresse pós-traumático) com homens gays em 2015, ele afirmou que 90% deles disse que queria um parceiro que fosse alto, jovem, branco, musculoso e masculino. Para a grande maioria de nós que mal atende sequer a um desses critérios, quanto mais os cinco, esses aplicativos apenas fornecem uma maneira eficiente para se sentir feio.

Foto de Derick Anies em Unsplash.

Entre passadas de tela vamos descobrindo nosso lugar.

Esses apps são lotados de lugares-comuns discriminatórios e arrogantes. Um desses clichês, em particular, me chama muito a atenção: nada me parece mais violento nesse universo, me parece, do que a foto de um cara bem alinhado com padrões de desejo e beleza estar indexada, na descrição ou no título, à frase “Tenha bom senso”. Ter bom senso… Ter bom senso é desenvolver a noção correta acerca de qual é o valor social do seu corpo. Tenha bom senso, saiba o seu lugar! Se desenha aqui uma violenta ética das relações baseada no valor que os corpos adquirem a partir de índices de privilégio (vimos no trecho que destaquei: altura, idade, cor, porte físico, performance de gênero). No caso dos aplicativos, o cruel é que dificilmente alguém fala explicitamente para outra pessoa o quanto você vale. Você descobre a partir, sobretudo, da rejeição.

Eu não tenho uma relação okay com meu corpo. A maioria dos meus amigos gays também não tem. Alguns dificilmente ficam seminus em contextos públicos, outros se acham gordos demais, outros magros demais. Nossas roupas são escolhidas a dedo; uma calça que ajude a dissimular a finura das pernas, uma camiseta que disfarce a saliência do culote etc. etc. Nossa moda é voltada para a vergonha que temos de nós mesmos. As fotos que escolhemos para os apps são fruto de uma curadoria anti-ruídos. Óculos de sol nos deixam mais bonitos, que tal este outro ângulo? Uma careta pode ajudar… A ficar menos feio?

Nunca nos controlamos tanto, nunca privamos tanto nossos gestos e texturas naturais do espaço público. Aquela força política que é o corpo, a reservamos para o privado mais privado. É paradoxal: nos expomos o máximo que podemos, tanto nas redes sociais como nos apps, mas é no fim uma exposição regulada. Nossos pneus, nossas tristezas e nossos deméritos, tudo isso é privado, tudo isso efetivamente nos expõe.

Sem falar do fato de que tais plataformas são verdadeiros hospedeiros de imoralidades e covardias: do gay fascista e racista enrustido — ou mesmo daquele hipócrita que diz publicamente que detesta o “mundo gay” porque este é promíscuo — , do homem que tem uma vida pública hétero, daqueles homens que rompem o contrato exclusivista. Por detrás de torsos, dorsos, pênis, glúteos e abdômens, repousam incólumes e alheios a qualquer responsabilidade sentimental ou política, homens de caráter questionável. Aqueles homens que culpam seus iguais pela miséria de que são reais contribuintes.

Há oito meses atrás, após ler o artigo de Michael Hobbes que citei acima, decidi que romperia com o uso de aplicativos de conexão. Minha decisão não era de cunho moralista; conforme eu mesmo disse no início do texto, eu acredito no potencial criador desses dispositivos. Aquilo de fato não me fazia bem, e roubava um tempo enorme, que eu considerava e considero muito precioso. Bom… Não queria parecer exagerado, mas... Excluir esses softwares do meu smartphone mudou a minha vida! Tenho conhecido gente de carne e osso. Não tenho me decepcionado com o contraste entre as fotos e o 3D. Não tenho decepcionado ninguém também, acredito. O melhor de mim, o melhor dos outros, não delimita a priori, não faz recrutamento profissional no Tinder, não seleciona as pessoas a partir das paisagens e ocupações profissionais, não circunscreve nem condiciona a partir de genitais.

No mundo das pessoas de carne e osso, ter bom senso não é saber seu preço no açougue, mas construir seu valor a partir e através de relações humanizadas.

Foto de Samuel Zeller em Unsplash.

Post-Scriptum: Recentemente publiquei um ensaio chamado Ninguém é heteronormativo!, em que discutia o que chamei “a falsa oposição entre desconstruíd@s e padrãozinhos”. Basicamente quis dizer o seguinte ali: que o conceito de heteronormatividade, que já não parecia ser a ferramenta analítica mais sofisticada do planeta, se apresenta cada vez mais politicamente esvaziado em função da forma como vem sendo recorrentemente usado. O texto que ora apresento mostra como a chamada “heteronormatividade” atua, produzindo diferença e dor. Assim, não basta reduzir e bipolarizar as pessoas entre “heteronormativos” e “desconstruíd@s” para entender a complexidade das questões que envolvem a atuação do heterossexismo na vida das pessoas gays.

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_erinhoos
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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas