The Handmaid’s Tale e os cúmplices do opressor

Laura Pires
Revista Subjetiva
Published in
8 min readOct 4, 2017
(ilustração por Beatriz Leite | contato: beatriz.hmleite@gmail.com)

Estamos vivendo tempos cada vez mais sombrios. Perdemos direitos quase semanalmente e vemos uma onda conservadora aterrorizante tomando conta da sociedade. Recentemente, museus foram boicotados e atacados por pessoas ofendidas com algum tipo de arte demonstrada lá. Curiosamente, em boa parte das vezes, essas pessoas estavam ofendidas com coisas que nem faziam parte da arte em si. E não adiantava explicar. Alguém postava “esse quadro não estava na mostra” e respondiam “VOCÊS SEM VERGONHA BANDO DE PETISTA PERVERTIDO ESSA ESQUERDA VAI ACABAR COM O PAÍS”. A ignorância é tanta que até o MAM do Rio de Janeiro recebeu ataques, pois milhares de pessoas não leram direito e confundiram com o de São Paulo. Enfim, o que mais tem me chamado a atenção nesses episódios é o pouco compromisso com os fatos. Políticos e personalidades públicas postam mentiras nas redes sociais, uma horda de ignorantes sem questionar replica e reage com violência. É sobre isso que se fala quando se fala em massa de manobra. Instaura-se o caos contando com pura ignorância popular.

E o que isso tem a ver com The Handmaid’s Tale? Pois bem, desde que assisti à primeira temporada da série, tenho pensado muito sobre o quanto daquele universo já existe na nossa realidade atual. Penso no quanto a ignorância vai construindo aos poucos algo que, na série, já está instaurando e, principalmente, no quanto muitas pessoas, sem perceber, lutam contra elas mesmas. E é isso que quero debater neste texto.

Resumão do que trata a série

Não foi nenhuma surpresa a quantidade de prêmios que The Handmaid’s Tale ganhou no Emmy. A série, baseada no livro de mesmo nome de Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985, é praticamente impecável. Quando decidi assistir à série, não fazia ideia sobre do que se tratava e, conforme fui entendendo, fiquei vidrada. Mas era um vício doloroso — e ainda é. The Handmaid’s Tale (em português, O Conto da Aia), é muito mais aterrorizante do que muito filme de terror. Por quê? Porque é real demais.

A série se passa nos Estados Unidos, em um futuro distópico. Há uma guerra civil cuja vitória de um grupo religioso culminou na fundação da República de Gillead, uma sociedade que resgata valores extremamente conservadores e na qual mulheres não têm voz. Pela série, podemos ver que a localização é algo próximo de Boston, mas não temos mais detalhes que isso. Nessa sociedade, as chamadas handmaids são encarregadas de engravidar e ter filhos para casais que não conseguem conceber. A premissa da história é que uma praga reduziu drasticamente a fertilidade e, há anos, poucas mulheres engravidam, poucos bebês chegam a nascer saudáveis ou sequer nascem. Dentro dos preceitos de Gillead, essas são mulheres inférteis — não existe a possibilidade de homens estéreis e a palavra é inclusive proibida. Sendo assim, as handmaids são treinadas para servir de barriga para esses casais. Para que engravidem, todo mês, em seu período fértil, a handmaid deve participar do que eles chamam de “cerimônia”. Esta consiste em: esposa sentada na cama com a cabeça da handmaid em seu colo e segurando seus punhos; handmaid deitada de barriga pra cima, apoiada da esposa; homem (chamado de Commander) basicamente estuprando a handmaid. É bizarríssimo. Conhecemos a história por meio da narrativa de June (Elisabeth Moss), uma das handmaids.

A série traz algumas adaptações em relação ao livro (que li depois). No livro, negros não fazem parte da República de Gillead e, para poder incluir atores e atrizes negros na série, optaram por mudar isso na história. Além disso, Moira (Samira Wiley), melhor amiga de June, na série é lésbica. Em diversas cenas de flashback, vemos as duas em festas, fumando, olhando o Tinder, flertando… São pequenos elementos que atualizaram a história e a tornaram mais assustadora: o mundo em que vemos as duas vivendo antes da guerra é idêntico ao nosso mundo atual. As coisas vão mudando aos poucos, com episódios de violência e perdas de direitos. Vendo a série, entendemos perfeitamente que aquilo tudo poderia acontecer com a gente e que esses pequenos episódios já acontecem. Se quiser exemplos, volte ao primeiro parágrafo do texto.

Cúmplices do opressor

Fazendo um copia-e-cola do dicionário, a palavra ignorância significa 1) estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo; 2) estado de quem não tem conhecimento, cultura, por falta de estudo, experiência ou prática. Embora seja frequente o uso do termo “ignorante” como xingamento, ele não necessariamente o é. Serve apenas para denotar esse estado de não saber. E não há nada de errado em não saber. O problema começa quando não há interesse em passar a saber ou quando ignoramos nossa própria ignorância e assim agimos de maneira arrogante. Mas a questão aqui é: a quem interessa que permaneçamos ignorantes e a quem serve essa ignorância?

Tem uma citação maravilhosa da Simone de Beauvior que diz o seguinte:

“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”

Não é uma questão de culpar os oprimidos por muitas vezes lutarem contra si próprios sem perceber. É sobre entender que o opressor se fortalece nesse apoio e que só consegue isso devido à ignorância.

Uma das mudanças que a série The Handmaid’s Tale fez em relação ao livro foi o histórico da personagem Serena Joy (Yvonne Strahovski), a esposa do Commander de June. Aliás, não há nenhum momento na série em que a chamem por esse nome, ela é sempre Mrs. Waterford, mas vou usar o nome original aqui. Já no primeiro episódio, me chamou atenção o desconforto dela com toda aquela situação. É uma personagem muito interessante, pois, embora ela colabore o tempo todo para que as coisas funcionem da forma que estão funcionando, ela parece sempre insatisfeita, sempre muito incomodada, com uma expressão facial quase permanente de quem comeu e não gostou. E é no sexto episódio da série, A Woman’s Place (em tradução livre, O Lugar de uma Mulher), que entendemos um pouco do porquê.

Em A Woman’s Place, acompanhamos em flashbacks a vida de casal dos dois antes da instauração da República de Gillead. Nesses flashbacks, descobrimos que — muito diferente da imagem de esposa submissa que Serena Joy às vezes passa ou é obrigada a passar — ela, junto com o marido, foi uma das responsáveis pelos ataques terroristas que deram início a tudo. Mais do que isso, ela foi uma das autoras das leis dessa república. Também descobrimos que ela era escritora e advogava a favor do que chamavam de “feminismo doméstico” — um feminismo que defendia que as mulheres voltassem às tradições ditas femininas.

No mesmo episódio, a embaixadora do México vai até Gillead para conhecer a sociedade em que vivem e como ela funciona e é recebida na casa do Commander. Sendo mulher, é natural que ela tenha interesse em saber como as mulheres se sentem dentro daquela sociedade. Ela, então, se dirige “ao lado quieto da sala”, isto é, às esposas ali presentes, e as pergunta diretamente. Serena Joy responde que se sente abençoada por ter um marido para cuidar dela. A embaixadora responde com uma citação: “Nunca confunda a submissão de uma mulher com fraqueza.” Nesse momento, vemos Serena Joy engolir seco. A citação (que me parece extremamente ingênua) é do livro escrito por ela — o título do livro é o título do episódio.

A embaixadora comenta sobre como ela era engajada às causas do feminismo doméstico e pergunta se, quando escreveu o livro, ela imaginava que ajudaria a criar uma sociedade na qual mulheres não podem ler esse livro — ou qualquer outra coisa. (Aliás, nessa sociedade, mulheres têm suas mãos amputadas caso sejam pegas lendo ou escrevendo.) Serena Joy responde, sempre olhando para o marido como quem pede por confirmação, que alguns sacrifícios precisam ser feitos e que Deus retribui com bênçãos.

Esse é um dos meus diálogos preferidos da série (e não existe no livro). Ele me faz pensar em grupos do tipo “mulheres contra o feminismo”. Frequentemente, leio por aí publicações de mulheres inteligentes e bem articuladas defendendo o machismo, e fico chocada. Com mais frequência ainda, observo essa defesa nas pequenas coisas. Outro dia alguém tuitou uma foto do goleiro Bruno com o comentário “por que foi estragar sua vida por causa de uma mulher?” e vi um monte de mulheres apoiando e reproduzindo absurdos do tipo “isso que dá se envolver com piranha”. Falamos que mulheres não são obrigadas a serem donas de casa, entendem que não pode ser dona de casa. Falamos que mulheres não são obrigadas a serem mães, entendem que não pode ser mãe. Falamos que mulheres não são obrigadas a se depilarem, entendem que não pode se depilar. E, com base em uma variedade imensa de premissas simplesmente erradas, vemos mulheres lutando contra feminismo sem perceber que estão lutando contra si próprias.

Não é por falta de explicação e acesso à informação que esse fenômeno acontece. A atriz Shailene Wodley certa vez declarou que não se considera feminista, pois acredita que homens e mulheres devem ter direitos iguais. É uma frase absurda, pois qualquer pessoa que saiba o mínimo do que é feminismo sabe que a definição mais básica, aquela que todas as vertentes concordam, é acreditar que homens e mulheres devem ter os mesmo direitos. E o perigo de dizer algo assim — especialmente quando se trata de uma figura pública, mas não só — é que pessoas ignorantes quanto ao que é feminismo aprendem que feminismo é o contrário de machismo e saem por aí propagando mais lixo em forma de opinião.

Isso não ocorre apenas com mulheres e feminismo. Há gays com práticas e discursos homofóbicos, negros que defendem que racismo é vitimismo e por aí vai. O sistema funciona tão bem, que grupos oprimidos que lutam ao lado dos opressores são até comuns. Falta discernimento, cabeça aberta a entender, pensamento crítico.

Quando vejo essas manifestações moralistas e conservadoras que clamam por cada vez mais censuras e aplaudem perdas de direitos como se fosse uma vitória de time de futebol contra “esquerdistas”, “petistas” e outras asneiras, penso em Serena Joy na República de Gillead. Penso em uma sociedade que chegue a conquistar tudo que essas pessoas estão lutando para conquistar e me pergunto se elas têm noção daquilo pelo que estão lutando. Penso se, assim como Serena Joy, só vão sentir o tiro no pé quando a ferida já estiver necrosada. E, tendo visto essa primeira temporada inteira de The Handmaid’s Tale e observando os acontecimentos recentes aqui no Brasil e no mundo, fico cada vez mais paranoica e pessimista.

Deixo aqui no fim, sem nenhuma mensagem de esperança, mas de constatação, uma citação da Maya Angelou que gosto muito:

“Eu sou feminista. Sou mulher há um bom tempo. Seria burrice não estar do meu próprio lado.”

Só gostaria de corrigi-la e dizer que não é burrice, é ignorância. E é por ignorância que tantas pessoas são manipuladas a não perceberem que não estão do próprio lado. O que será que precisa acontecer para perceberem? Se seguirmos pelo caminho que parecemos estar seguindo, acho que teremos, como sociedade, cada vez mais em comum com aquele futuro distópico de The Handmaid’s Tale. E não consigo imaginar terror maior que esse.

Gostou desse texto? Clique em quantos aplausos — eles vão de 1 à 50 — você acha que ele merece e deixe seu comentário!❤

Redes sociais: Facebook|Twitter|Instagram|YouTube

Leia textos exclusivos e antecipados assinando a nossa newsletter.

Já conferiu a nossa revista em versão digital? Está linda! Vem ver!❤

Entre no nosso grupo fechado para autores e leitores.

--

--

Laura Pires
Revista Subjetiva

Escrevo sobre relações de afeto. Instagram: @_laurampires . Contato profissional: contato.laurampires@gmail.com .