“Titane” e o cinema que tem vergonha de ser o que precisa ser

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
5 min readNov 15, 2021
Titane, de Julia Ducournau

(Esse texto contém spoilers sobre Titane, de Julia Ducournau).

O primeiro filme da diretora francesa Julia Ducournau, Raw, tem dois problemas gravíssimos: uma falta de inventividade visual típica do “cinema de arte” contemporâneo, muitas vezes optando por uma mise-en-scène preguiçosa e que se tornou convencional sobretudo na Europa, ainda pior quando falamos de um filme de terror por impedir qualquer sensação de medo, nojo ou pânico, e um moralismo atroz ao metaforizar a condição do canibalismo com o despertar da sexualidade no final da adolescência.

Por isso, tive os dois pés atrás quando Titane, seu segundo longa, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021. A descrição de um body horror no qual uma mulher transa com um carro e engravida me interessou muito, mas duvidei que Ducournau o fizesse com alguma inventividade visual e sem moralismo.

Ducournau ainda engrossou o coro recente anti-cenas de sexo no cinema (“se não vai avançar a narrativa, não faça”), um coro que ganha voz em uma escola cinematográfica que vê nos filmes um utilitarismo narrativo que é simplesmente terrível: uma das coisas que um cineasta mais precisa entender para fazer bons filmes é que IMAGEM NÃO É ACESSÓRIO DA NARRATIVA. Se um dia eu der qualquer tipo de aula sobre cinema, prometo obrigar cada aluno a escrever essa frase no quadro negro 100 vezes, tal qual nos memes envolvendo Bart Simpson.

Considerando todas essas informações: Titane me surpreendeu: a primeira meia-hora é corajosa e está disposta a, ao menos, tentar ser um autêntico body horror.

O filme começa em um ritmo alucinante com dança sensual, assassinato, banho, aflição, sexo com carro, mais assassinatos, mais aflição intensa. Tudo com uma certa inventividade visual, com coreografia, com uso de música, com cara de cultura popular moderna misturada com fetichismo. É bastante divertido.

A personagem principal é uma badass, uma dançarina serial killer com placa de metal na cabeça. Sai por aí, dança, transa e mata. Não é necessário muito mais do que isso: Godard já dizia que film is a girl and a gun, substituir a arma por uma agulha de tricô que prende o cabelo nos faz ainda mais felizes.

Mesmo nessa primeira meia-hora, é preciso dizer, Ducournau não põe o pé no acelerador tanto quanto poderia. A cena de sexo com o carro fica enquadrada apenas na parte de cima do corpo da protagonista e não é precisamente filmada ou coreografada, não transpira tanto fetichismo como alguns cineastas fariam transpirar (e isso não precisa ser necessariamente por um olhar masculino, que fique claro). Os assassinatos não são gráficos o bastante. Poderia ter muito mais sangue, tripas, miolos, sexo, fluidos corporais. Mas, ainda assim, ela está tentando criar algo de diferente, enveredando no seu próprio caminho de body horror.

Façamos uma pausa: se você vai ao cinema assistir um body horror sobre uma mulher que transa com um carro e engravida, o que espera? Uma história profunda e edificante, personagens complexos, uma narrativa bem construída, ou sexo, sangue, mortes e insanidade visual? Se você respondeu a primeira, bom, sinto muito, mas imagino que você seja um pouco chato.

A primeira meia-hora de Titane entrega o que nós queremos de um body horror. A câmera que não filma tanto sangue e que esconde o sexo com o carro nos diz que Julia Ducournau está um pouco envergonhada de seu filme, mas ok, até então tudo funciona. A personagem é uma badass, e porra, tem sexo com um carro! Tem uma mulher descobrindo que está grávida e vazando óleo de motor!

E a partir daí, Titane desanda. O que acontece a seguir é uma auto-destruição raríssima em um filme. A pontinha de vergonha que Julia Ducournau sentia do que vinha fazendo se transforma em uma completa necessidade de apagar aquilo, de dizer, NÃO, EU NÃO ESTOU FAZENDO UMA OBRA QUE SÓ TEM SEXO E MORTE, uma vontade de negar o caminho da diversão e da liberdade. É uma enorme tristeza.

Além de não ter mais nenhuma cena fantástica de assassinato, mais nenhuma coreografia envolvendo música pop, mais nenhuma cena de sexo, mais nenhuma bizarrice envolvendo motores e carros, ou seja, de esconder completamente a sua primeira meia-hora em prol de uma trama fraquíssima e vulnerável sobre desejo de paternidade, Titane comete um erro ainda pior: esquece completamente a sua protagonista.

Alexia, a mulher badass que mata, transa com carros e tem uma obsessão por metal, vira Adrien, um personagem que nem sequer fala. Deixa de ter voz, deixa de ter identidade, deixa de existir. É possível dizer que Alexia morre e, com ela, morre Titane.

Toda a trama dos dois terços finais de Titane é fraquíssima, um pastiche que busca encontrar alguma profundidade como se Julia Ducournau precisasse validar o seu filme, mostrar que não é só um body horror. Com tudo o que o filme tinha de bom desaparecendo, sobra um enorme incômodo pelo desaparecimento da protagonista e pelo desaparecimento da inventividade visual, da coragem, da evolução de Ducournau como diretora.

Com o personagem com uma obsessão por paternidade em cena, Titane caminha para um final sem sal, previsível, sem nenhuma inventividade. Não duvido, aliás, que você lendo esse texto sem ver o filme já saiba qual é.

Minha conclusão é que Julia Ducournau pensou em fazer um body horror, teve ótimas ideias sobre como fazê-lo, criou uma personagem que poderia ser icônica. Mas, ali no meio do caminho, ficou com vergonha de entregar só isso e estragou tudo desviando do caminho, desviando do sexo, das máquinas, do metal, do titânio, das mortes, da agulha de crochê, do sangue, do vômito, da vagina vazando óleo, de tudo que faz a primeira meia-hora de Titane ser ótima.

E o que fica é esse filme envergonhado, encolhido no cantinho, pedindo para ser respeitado porque não tem só sexo e morte, mas na verdade perdido no próprio ridículo, na própria trama completamente rasa, repetitiva, previsível, de quinta categoria que cria para tentar se validar como cinema de arte.

Eu penso em Titane nas mãos de um diretor que nunca teve vergonha de pisar no acelerador e ir a fundo no cinema que sabe viver só de imagem, só de fetichismo, de beleza/feiuira, de sexo/morte, como Verhoeven, Cronenberg ou Tarantino, e fico sinceramente triste.

Entendo a Palma de Ouro em Cannes — é um filme que, ao menos, dá muito para que a gente discuta: poucas horas após assisti-lo, consegui escrever esse texto enorme. Mas acredito que o prêmio foi muito mais para o que Titane queria ser do que para o que ele realmente é.

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.