Toda mulher é meio Leila Diniz

Carolina Bataier
Revista Subjetiva
Published in
5 min readMar 27, 2019
Foto: Divulgação

Ontem, dia 25 de março, seria aniversário da Leila Diniz e eu lembrei do texto que escrevi faz uns anos.

Como toda criança de classe média dos anos 90, eu ganhava muita roupa usada dos primos mais velhos. Numa dessas levas, chegou até mim uma camiseta com a seguinte frase: Meio inconsciente, me tornei mito e ídolo, ou mulher símbolo da liberdade, tudo escrito em roxo e a palavra liberdade em amarelo, destacada. Embaixo, o nome da autora: Leila Diniz.

Eu, que não tinha mais que 11 anos, fiquei encantada e perguntei ao meu pai quem era Leila Diniz. “É uma mulher aí”, desconversou. Insisti, ele falou algo como “foi pra praia de biquini”, qualquer coisa sugerindo não ter muita importância.

Não me contentei.

Não lembro como descobri, porque naquela época ninguém tinha internet em casa, mas achei incrível quando soube que Leila Diniz não somente foi à praia de biquini. Ela era uma mulher grávida que foi à praia de biquini numa época em que mulheres haviam sido proibidas de usar biquini.

Por volta de 1995, começaram a surgir os primeiros problemas ideológicos entre meu pai e eu. Foi também quando começaram a surgir os primeiros traços do meu eu-político e social atual.

Meu pai é uma pessoa maravilhosa. Sempre me incentivou a estudar e pensar numa boa carreira, me falou de independência financeira e amor próprio. Quando eu era criança, ele contava histórias e aos finais de tarde me colocava na garupa da moto para sairmos pela estrada de terra curtindo a paisagem. Um paizão, mas um homem. Um típico homem dos anos 90, e como tal, e como muitos, um tanto desajeitado quando o assunto é universo feminino.

Para uma menina com um pé na adolescência num mundo cercado de “menina não pode”, uma mulher que nos anos 70 vestiu um biquini e foi à praia é uma heroína. Conscientemente, eu não sabia disso. Hoje eu sei.

Se hoje me assumo feminista, é — também — por Leila Diniz. E pelo meu pai, que certamente não se considera machista. Meus anos de guerra ideológica com ele, na adolescência, passavam por isto: víamos o mundo de pontos de vista diferentes e ele não estava disposto a tentar entender o meu universo.

Há um estigma na palavra machismo, tanto quanto há no feminismo. Machista não é só o agressor violento ou o trabalhador que considera sua força de trabalho mais valiosa que a de uma mulher. É também quem se nega a rever os papéis sociais destinados a cada um de nós baseado no que temos entre as pernas. Não agredir não basta. É preciso quebrar padrões, repensar, questionar a normalidade. Caso contrário, você acaba reproduzindo violências.

Quão violento pode ser você podar pela raiz os sonhos de uma menina ao dizer que ela não pode jogar futebol? Também não é uma forma de violência aniquilar os ídolos de uma criança que está descobrindo o mundo e a si mesma? Há muita violência na preocupação com a menina desajeitada. Dizemos: fecha as pernas, você é mocinha antes de questionarmos por que uma menina de 12 anos deve deixar a infantilidade de lado e se preocupar com os olhares lascivos de homens adultos. Damos boneca, coroa de princesa, elogiamos como linda e definimos o destino de meninas antes mesmo de permitir a elas se descobrirem. Cobramos, assustamos, impomos, podamos.

Este é o desafio de se assumir feminista: ao faze-lo, temos que pensá-lo. E ao pensar o feminismo, descobrimos que mesmo as pessoas que amamos nos machucaram. E, pior ainda: precisamos lidar com o machismo que impusemos a nós mesmas e a outras mulheres.

É um processo doloroso. Veja bem: machismo não se expressa somente pela violência física, mas também pelas imposições sociais. De quantos você não pode é feita uma carreira brilhante deixada de lado? Quantas meninas abriram mão de sonhos por crescerem acreditando que certas coisas não serviam para elas?

Quando a gente é chata e fala de desconstrução de conceitos e padrões, estamos falando disto: pensar no que estamos transmitindo para os pequenos. Os adultos não sabem lidar com crianças, principalmente com meninas. Na faculdade, uma professora dizia que o maior desafio do escritor de livros infantis é escrever a partir do ponto de vista da criança. É um trabalho difícil, porque o escritor é adulto e já se afastou faz tempo da realidade infantil. O mesmo vale para as conversas com crianças: os adultos, em geral, não conseguem fazer isso sem feri-las.

Quando, tempos atrás, falamos sobre o #meuprimeiroassédio, trazendo relatos dos primeiros assédios sofridos por mulheres, lembrei de quando tinha 11 anos e me disseram que eu precisava começar a usar soutien. Eu sentia as mudanças no meu corpo, mas não compreendia ainda o sentido amplo daquilo tudo. Dali para frente eu seria uma mocinha e, por isso, precisava me esconder dos olhares dos homens. Quão violento é isso para uma menina que quer só brincar de amarelinha? O melhor jeito de proteger uma criança é respeitando a infância, não tratando-a prematuramente como gente grande. É preciso aprender.

Essa disparidade entre o mundo adulto — cheio de conceitos e verdades irrefutáveis — e o mundo infantil — livre, destemido, cheio de sonhos —precisa ser pensada, compreendida, trabalhada, para que sonhos não sejam podados prematuramente. Para que as crianças encontrem, elas mesmas, suas verdades. Anos depois, eu finalmente consigo me sentir tranquila comigo mesma e entender que meus ídolos não estão errados.

Se eu tivesse conhecido o feminismo uns 15 anos atrás, minha adolescência teria sido mais fácil. Porque, pra mim, uma das belezas de entender o feminismo é isso de olhar para nós mesmas, perceber o quanto de nós é vontade própria e o quanto é imposição social. E encontrar conforto.

É por isso que eu me assumo, hoje, feminista. Porque, um dia, Leila Diniz me falou que mulheres podiam ser livres, seja lá o que a palavra liberdade queira dizer para cada uma de nós.

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