Travessia

Quem vem a tona é a transmutação da alma

Julia Caramés
Revista Subjetiva
4 min readJul 12, 2019

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Pixabay

Talvez eu me perca um pouco se confirmar que parte de mim já não se encontra como eu deixei da última vez. Existiu esse pedaço que caminhou comigo por longos anos. Segurava os corrimões, subia os degraus na ponta dos pés e sempre dava um jeito de esclarecer as linhas das mãos.

Minhas mãos parecem mapas de um destino incerto, com linhas que despontam, se cruzam, formam desenhos, enigmas, triângulos e pergaminhos. Se ramificam sem muito bem saber o que querem dizer com isso. Uma cartomante me disse uma vez que os triângulos simbolizavam proteção divina. Carrego três: de diferentes tamanhos, espessuras, formatos e em ambas as mãos, eles insistem em aparecer.

O que eu perdi de vista era essencial. Parecia necessário e hoje soa como uma besteira, um zunido nos ouvidos, uma mala vazia, uma bagagem mofada e desnecessária. Se eu continuar procurando palavras pra explicar, é possível que eu acabe soando meio idiota no fim. Às vezes eu me pego em transe tentando captar o que foi, no meio do que agora já é e acabo me perdendo numa bruma de cheiro doce e sensível ao toque. Talvez a vida seja mesmo psicodelia pura.

Não é como se eu tivesse perdido um fio de cabelo ou um pedaço do corpo. Dadas as certas proporções não é nada vital e ainda sim era algo vivo. Impalpável e invisível, porém vivo. Se eu me estender um pouco mais nessa perda é provável que o mundo tenha que se abrir e se transformar para eu voltar a caber nele. Eu sempre soube que ser gigante pode causar dor.

Sempre me cansei muito por insistir em ser. A busca pelo pertencer aos espaços, templos e meu próprio sagrado era exaustiva. Ao tentar dar certo com o mundo eu me rasgava e me dilacerava. Só fazíamos as pazes quando eu perdia o propósito de vista. Quase como gato e rato, a fuga e o escapismo eram doses unânimes de anestesia.

Era um enigma que de olhos bem abertos, eu tentava decifrar. Lidei com rastros lacônicos, penas duras e incertezas que fincavam as garras na alma. A alma por si só vagava perdida, em si e a o redor dos outros. Parece que antes eu mal sentia os outros. Categorizava amor nas relações sem sentir direito o que é que eu chamava de amor. Era tudo parte de uma solução heterogênea pronta pra me separar, como por um fio invisível, de tudo e de mim mesma.

Esse era o único cenário que eu conhecia e por anos pareceu que tudo bem. Não tava tudo bem, nunca esteve. Olhar pra trás me dá a sensação de uma peça mal pregada, meio cinza, ou com jeito de pintura que não deu certo. Era o descolamento que causava ânsia, desespero e dor. A calma veio pontual, numa tonalidade fluida, leve e sublime. Como quem desafrouxa os laços e impõe o oxigênio necessário pra me pôr de pé. É a vontade de ser e certeza de confiar não sei sabe muito bem no quê. Mas confio.

Antes de morrer, se vive. A transmutação faz parte da naturalidade das coisas. As coisas sim, que formam o ritmo da vida. Somos todos parte dessa dança, o que faltava era eu sentir meu lugar. O meu eu de antes vivia uma quase morte ou semi vida e não se doava por completo porque era só metade das coisas. Como se fosse só a casca de algo que por dentro ainda não se achou. Talvez o amor no ato de transformar seja finalmente se saber. Por inteiro.

O diagnóstico continua o mesmo. Dor das urgências. Excesso de fé na coragem e na própria fé. Inútil fugir, inútil chorar, inútil tudo. Mas ainda é preciso ter coragem pra se conter todas as urgências. Principalmente a parte que conduz o imediatismo a querer pertencer só ao que se quer e não ao que se dá. Nem tudo que se quer, se escolhe e se tem. Abraçar histórias demais pode ser devastador. Ritmo frenético. Cabeça de liquidificador. Vitamina cerebral. Energia na hora-lugar errados.

Calma para receber o que pretende ser. A força de ser o que se é e pronto. Porque se instala e com a força do existir, já é. Nasce no ser e pronto, agora já vive aqui comigo. Eu já sou eu sem precisar do eu que foi embora. Não larguei as cartas de tarô, a escrita vulcânica, a vontade de ser estética, beleza e expressão. Morreu um pouco no gosto e outro pedaço na essência, mas o extrato puro permanece aqui.

Aconteceu devagar igual filme francês que vem com enredo calmo e penetra na fotografia. Eu percebi os sinais, mas não me atentei a obra. Quando eu vi, a travessia já tinha se estabelecido, corrido e se transformado. Me preenchendo com uma calma que eu não conhecia. Ainda sou quase a mesma só que de um jeito diferente. Maior, muito eu, meio com medo e segurando firme. Inteira.

Foi bom me ver.

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Julia Caramés
Revista Subjetiva

Se veio aqui procurar alguma coisa me dá a mão que eu tô procurando também