TREZE RAZÕES E ALGUNS SENÕES

Paulo Cruz
Revista Subjetiva
21 min readMay 23, 2017

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Hannah Baker, o suicídio filosófico e o sentido da vida

À professora Mariana Almeida

“O fermento que pôs minha vida em movimento, falta; o estímulo que me encorajava à noite já não existe, aquele que me despertava pela manhã se foi”. (Werther, personagem de J. W. Goethe)

Quando decidi trocar a área de tecnologia pela docência em Filosofia, não sabia muito bem o que ia encontrar; eu sabia que a geração atual é completamente diferente da minha, mas a visão era superficial, imprecisa. Apesar de ter sobrinhos nessa idade, foi só o contato diário com adolescentes que me permitiu um olhar mais cuidadoso sobre essa geração, pois, de fato, não há como lecionar para jovens sem conhecer o seu mundo. E foi um choque perceber que eles carregam em si, em grau bastante acentuado, aquilo que Kierkegaard chamou de Desespero:

Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.[1]

Segundo o filósofo dinamarquês, a doença mortal acomete a todos, sem exceção. A uns mais, outros menos; a uns conscientemente, a outros, não. Mas ninguém sai ileso. E todo aquele que vive absolutamente inconsciente de seu estado, chega a irritar-se quando se lhe apresentam a verdade, e desespera ainda mais. Diz Kierkegaard:

Quase sempre, quando alguém se julga feliz e se envaidece com sê-lo, ao passo que à luz da verdade é um infeliz, está a cem léguas de desejar que o tirem do seu erro. Pelo contrário, zanga-se, considera como seu pior inimigo àquele que o tenta, e como um atentado e quase um crime esse modo de proceder e, como costuma dizer-se, de destruir a sua felicidade. Por quê? Mas porque é presa da sensualidade e duma alma plenamente corporal; porque a sua vida só conhece as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e manda passear o espírito, a verdade, etc..[2]

Eis o jovem de hoje: pura sensualidade, puro estímulo, pura dissolução. É um estado de latência perene, a-histórico e a-crítico — ainda que cheio de “certezas”; vive imerso num ambiente pleno de vazio, repleto de nada, transbordante de solidão. Raramente suas conversas ultrapassam a superfície de um tema; e, mais raramente ainda, quando tem algum contato com a literatura, deixa de ser aquele tipo de leitor que C. S. Lewis chama de iliterato — leitores sem sensibilidade literária, que lêem somente para “passar o tempo”[3]. Pois é justamente nesse ambiente que surge uma nova figura, a mais nova representante dessa juventude tão peculiar: Hannah Baker — anti-heroína da série 13 Reasons Why, sucesso produzido pelo Netflix, que estreou em 31 de marco de 2017.

[CONTÉM SPOILERS]

A série, adaptação do romance de Jay Asher (autor americano de novelas teen) pelo roteirista Brian Yorker, apresenta, em 13 episódios, o declínio existencial da garota Hannah, o percurso de uma incompreensível depressão que a leva ao suicídio — numa espécie de calvário invertido. A jovem, estudante do ensino médio, decide suicidar-se após uma série de eventos que julga responsáveis por sua desilusão. Mas, antes de consumar o sacrilégio, grava sete fitas cassete — sim, é isso mesmo, fitas cassete — nas quais narra, detalhadamente, os 13 motivos que a levaram a cortar os pulsos e sangrar até à morte na banheira de sua casa: desde ver seu nome figurar numa lista das “mais-mais” da escola (ela, eleita a maior bunda), até presenciar um caso de estupro e, ela mesma, ser estuprada posteriormente. Cada motivo envolve uma pessoa, que recebe as fitas para que ouça, sofra e passe-as à frente, ao próximo “réu”. Hannah conta — desde seu ponto de vista, vale lembrar — como vai definhando, motivo a motivo, até o ato fatal; e impressiona o modo organizado e minucioso com o qual vai responsabilizando aqueles que a levaram a tomar tal decisão.

Sua intenção é fazer com que cada um dos acusados ouça as fitas; porém, na série, a bola da vez é Clay Jensen, amigo próximo e, provavelmente, alguém que a poderia ter salvo se não fosse tão hesitante. Hannah e Clay passam o tempo todo num quase, numa paixão subterrânea que jamais vê a luz; hesitam sempre e, irritantemente, sem motivo algum. Quando finalmente se declaram, o fazem para repelirem-se imediatamente. Portanto, agora, como diziam ao antigos, “Inês é morta” — ou melhor, Hannah. E a cada fita que ouve, Clay é lançado num turbilhão de lembranças da amada e quase sucumbe.

O fato é que, ao suicidar-se, Hannah culpa a todos mas exime-se de sua própria responsabilidade — o que não é de todo errado, em se tratando de alguém que desesperou. Diz Kierkegaard: “Quando o homem [ou alguém], com efeito, perde o temporal e desespera, o desespero parece vir de fora, se bem que venha sempre do eu”[4]. É uma situação limite, onde o eu se retrai e se fecha em si mesmo; nas palavras de Kierkegaard, num hermetismo. E, nesse hermetismo, o desespero leva à possibilidade do suicídio:

Qualquer eu, por pouco refletido que seja, tem contudo a idéia de se dominar. E o nosso desesperado tem o suficiente hermetismo para conservar os importunos, isto é, toda a gente, à distância dos segredos do seu eu, sem perder o aspecto de “um vivo”. […] Suponho que nos tornássemos seu confidente, e lhe disséssemos: “Mas o teu hermetismo é orgulho! No fundo estás ufano de ti!”, é muito provável que não o confessasse. A sós consigo, reconheceria talvez a nossa razão; mas depressa a paixão com que o seu eu penetra a sua fraqueza lhe restitui a ilusão de que não pode ser orgulho, visto que era da sua fraqueza, precisamente, que desesperava — como se atribuir esse peso enorme à fraqueza não fosse orgulho, como se a vontade de se orgulhar do eu o não impedisse de suportar essa consciência da fraqueza. […] Mas lancemos um último olhar ao íntimo deste taciturno que não faz senão chafurdar na sua taciturnidade. Se a mantém intata, omnibus numeris absoluta [perfeitamente sem restrições], o suicídio é o seu primeiro risco. O comum dos mortais não faz naturalmente a menor idéia do que pode suportar um hermético desta espécie; ficariam estupefatos se o soubessem. Tão certo é que ele corre, em primeiro lugar, o risco do suicídio. Que pelo contrário ele fale a alguém, que se abra a uma só pessoa que seja, e produz-se então nele uma tal aquietação, um tal apaziguamento, que o suicídio deixa de ser o desenlace do hermetismo. Um confidente, um só, basta para fazer abaixar dum tom o hermetismo absoluto. Há então probabilidades de o suicídio ser evitado.[5]

O que não seria propriamente uma garantia, pois, no entanto:

[…] a própria confidência pode dar lugar ao desespero, e então afigura-se ao hermético que suportar a dor de se calar teria sido infinitamente melhor do que tomar um confidente. Há exemplos de herméticos levados ao suicídio precisamente por terem tomado um confidente.[6]

E aqui entramos naquilo que Albert Camus chamou de o único “problema filosófico realmente sério: o suicídio”[7]. O suicídio é um ato de desespero, um impulso irrefletido para a morte; Camus explica:

Raramente alguém se suicida por reflexão (embora a hipótese não se exclua). O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam freqüentemente de “profundos desgostos” ou de “doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é o culpado.[8]

Porém, como diz o filósofo, não podemos descartar os casos em que o ato é envolto em racionalidade e intenção planejada. Nesse caso, lembro-me da história de Ramón Sampedro, o espanhol que, após sofrer um acidente que o deixou tetraplégico, passou a lutar pelo direito à eutanásia — ou suicídio assistido. Ramón teve seu pedido negado pela justiça, pois a eutanásia era proibida por lei. Mesmo assim, com a ajuda de amigos, planejou minuciosamente a sua morte e, em 12 de janeiro de 1988, morreu ingerindo uma solução de cianeto de potássio. É um caso sui generis de suicídio, mas sua obstinação chega a nos constranger. Sua história foi registrada no belíssimo filme Mar Adentro (2004), dirigido por Alejandro Amenábar.

Voltando a Hannah Baker e seus treze motivos, o sociólogo Émile Durkheim, em seu famoso e longo ensaio O Suicídio, fala sobre aquele tipo específico de suicidas, os melancólicos, “que preparam com calma seus meios de execução; até revelam, na perseguição de seu objetivo, uma perseverança e, às vezes, uma astúcia incríveis”[9]. Essa é Hannah. Após tudo o que sofreu, todo o trauma que carrega, ainda consegue, com uma frieza só vista em psicopatas, arquitetar um plano de vingança original — apesar do recurso antiquado: fitas cassete. A minúcia, as provocações, o enredo que desenvolve em sua narrativa, são, de certa forma, engenhosos demais para uma adolescente na situação que ela se encontrava. No entanto, vi alunas minhas, em defesa do ato de sua heroína, se comportarem como Werther[10], que, em defesa do suicídio, diz a seu amigo Alberto, que considera loucos aqueles que dão cabo à própria vida:

“É lamentável que vós, os homens […], não podeis falar de nada sem dizer primeiro: Isto é louco, aquilo é prudente, isto é bom, aquilo é mau! E o que significa tudo isso? Por acaso buscastes alguma vez, antes disso, as íntimas circunstâncias de um ato? Sabeis precisar com certeza as razões por que ele ocorreu, por que ele teve de ocorrer? Se tivésseis feito isso não seríeis tão prontos em vossos juízos”.[11]

Mas, vejamos, justificar o ato de Hannah é aceitá-lo, e aceitá-lo é acatar a possibilidade do suicídio como uma saída para a depressão. A respeito disso, várias resenhas da série citam aquilo que ficou conhecido como Efeito Werther — termo criado pelo pesquisador David Phillips, da State University of New York, que, em 1974, escreveu um artigo denunciando a onda dos chamados suicídios copiados, nos quais pessoas suscetíveis são levadas ao mesmo ato quando este é superexplorado, principalmente pela mídia.

E esse é um dos principais problemas de 13 Reasons Why: a série, a exemplo do que faz Goethe, em Werther, romantiza o suicídio e o mostra como uma alternativa plausível ao infortúnio. Como se o suicídio fosse um ato heróico, praticado por alguém cuja coragem ultrapassa a mediocridade dos mortais. Porém, como disse de maneira incisiva o pastor luterano Johann Melchior Goeze, um ano após o lançamento do livro de Goethe (1775): “Pode residir a verdadeira virtude em um coração cuja ideia favorita é o suicídio, e que emprega todo o seu engenho para torná-lo mais aceitável?”[13]

A resposta é, definitivamente, não.

E aqui vale uma longa citação de G. K. Chesterton, que, com sua habitual genialidade, coloca as coisas em seu devido lugar:

O suicídio não só constitui um pecado, ele é o pecado. E o mal extremo e absoluto; a recusa de interessar-se pela existência; a recusa de fazer um juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele elimina o mundo. Seu ato é pior (considerado simbolicamente) do que qualquer estupro ou atentado a bomba, pois destrói todos os prédios; insulta a todas as mulheres. O ladrão se satisfaz com diamantes; mas o suicida não: esse é seu crime. Ele não pode ser subornado, nem com as cintilantes pedras da Cidade Celestial. O ladrão elogia os objetos que furta, quando não elogia o dono deles. Mas o suicida insulta a todos os objetos da terra ao não furtá-los. Ele conspurca cada flor ao recusar-se a viver por ela. Não existe nenhuma criatura no cosmos, por mínima que seja, para quem a sua morte não é um escárnio. Quando alguém se enforca numa árvore, as folhas poderiam cair de raiva e os pássaros fugir em fúria, pois cada um deles recebeu uma afronta direta. […] Mais ou menos na mesma época [na qual Chesterton se convencia da verdade paradoxal do Cristianismo] li uma solene bobagem de algum livre-pensador. Dizia ele que um suicida era simplesmente o mesmo que um mártir. A patente falácia desse texto ajudou-me a esclarecer a questão. Obviamente um suicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homem que se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece; o outro, que tudo acabe.[14]

No entanto, a cena do suicídio de Hannah, a qual o telespectador é conduzido astutamente pelo diretor, é o momento mais impactante da série. Segundo seus criadores: “queríamos que fosse doloroso de assistir, porque queríamos que fosse muito claro que não há nada, de qualquer forma, que valha a pena sobre o suicídio”[15]. Mas não é isso que tem ocorrido. Provavelmente, por ser a carga emocional contida na cena incompatível com pouca maturidade dos adolescentes que assistem a série, a empatia para com o ato de Hannah é altíssima. E isso não é emocionalmente saudável.

Outro problema, como já mencionado, é o fato da série, que parece tratar de bulliyng, sofrimento e suicídio, na verdade, é uma história sobre vingança; de como Hannah arquiteta um plano mirabolante para acusar e fazer sofrer seus colegas de escola — ou , melhor dizendo, ex-colegas.

Hannah sofre tão amargamente que, ao que parece, é empurrada para sua desgraça, como se fossem as Moiras a lhe dirigirem o destino. Mas, antes, quer passar a responsabilidade a terceiros.

Hannah é um eu que desespera e se aniquila, e sofre daquilo que Viktor Frankl — um dos homens mais sábios de todos os tempos — chama de frustração existencial: “Já não vivemos mais hoje, como no tempo de Freud, em uma época de frustração sexual. Nossa época é a da frustração existencial. E em particular entre os jovens, cuja vontade de sentido se encontra frustrada”[16]. Manifesta-se, em nossa época, um “sentimento abismal de falta de sentido”.[17] Frankl esclarece:

Quando me perguntam como explicar o advento desse vazio existencial, cuido então de oferecer a seguinte fórmula abreviada: em contraposição ao animal, os instintos não dizem ao homem o que ele tem de fazer e, diferentemente do homem do passado, o homem de hoje não tem mais a tradição que lhe diga o que deve fazer. Não sabendo o que tem e tampouco o que deve fazer, muitas vezes já não sabe mais o que, no fundo, quer. Assim, só quer o que os outros fazem — conformismo! Ou só faz o que os outros querem que faça — totalitarismo.[18]

Viktor Emil Frankl foi um célebre psiquiatra austríaco, criador da Logoterapia[19] — ou Terapia do Sentido –, um método psicoterapêutico que visa a restabelecer no indivíduo o sentido de sua existência; uma terapia que ultrapassa a libido freudiana, bem como os complexos de inferioridade de Alfred Adler, seus dois precursores na Universidade de Viena. Com um método que, pela aparente simplicidade, é visto com desprezo pelas demais tradições da psicanálise, a Logoterapia tem curado muitas pessoas do desespero e da desilusão, conferindo-lhes um sentido para o seu destino inevitável.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Frankl e sua família — mãe, pai e esposa — foram levados aos campos de concentração nazistas. Somente ele sobreviveu. E em meio às torturas que sofreu e todo o sofrimento que presenciou, tinha todos os motivos para sucumbir; no entanto, percebeu algo surpreendente, que mudaria por completo não somente a sua vida, mas a História: aqueles que tinham um Sentido (com “s” maiúsculo) para suas vidas fora daquele lugar de horror e desesperança, suportavam melhor ou até suplantavam o grande sofrimento a que eram submetidos. Diz Frankl:

A busca por sentido certamente pode causar tensão interior em vez de equilíbrio interior. Entretanto, justamente esta tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental. Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência, mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido. Há muita sabedoria nas palavras de Nietzsche: “Quem tem por que viver suporta quase todo como”. Nestas palavras eu vejo um lema válido para qualquer psicoterapia. Nos campos de concentração nazistas poder-se-ia ter testemunhado que aqueles que sabiam que havia uma tarefa esperando por eles, tinham as maiores chances de sobreviver.[20]

O grande trunfo da Logoterapia, portanto, é orientar o ser humano para uma “finalidade moralizante”, ajudando-o a encontrar um sentido para a sua vida, e criar nele uma vontade de cumprir esse sentido. Essa poderia ter sido uma saída para Hannah Baker. A autotranscendência[21] em vez do ensimesmamento poderiam ter sido sua tábua de salvação.

E não podemos esquecer, evidentemente, daquilo que Frankl chama de Sentido Último: a Fé. A logoterapia sofreu duras críticas, pois a idéia de um sentido da vida esbarra num fim último, na esperança que transcende esse mundo. No entanto, Frankl afirma que:

Para a logoterapia, a religião pode ser um objeto — não uma posição. A religião é um fenômeno do homem, do paciente, um fenômeno entre outros fenômenos que encontra a logoterapia. No entanto, para a logoterapia, tanto a existência religiosa como a irreligiosa são, em princípio, fenômenos coexistentes. Em outras palavras, a logoterapia deve assumir perante eles uma atitude neutra. A logoterapia é uma orientação da psicoterapia, e esta pode ser exercida — ao menos segundo a legislação médica austríaca — por aqueles que são médicos. Portanto, e não por outro motivo, o logoterapeuta, uma vez que tenha prestado o juramento hipocrático, deve cuidar para que seu método e técnica (logoterapêuticos) sejam aplicados a todos os doentes, crentes ou descrentes; e também para que as técnicas logoterapêuticas sejam aplicadas por qualquer médico independentemente de sua cosmovisão.[22]

Portanto, a logoterapia não só respeita a fé do paciente como a utiliza como um recurso no seu tratamento. A fé religiosa é, inegavelmente, um poderoso agente de produção de sentido. Diz Frankl:

Ainda que a religião, como dito anteriormente, não seja para a logoterapia mais do que um objeto, ela, contudo, lhe é muito cara, e por uma razão muito simples: no contexto da logoterapia, logos significa espírito e, além disso, sentido. Por espírito entendemos a dimensão dos fenômenos especificamente humanos, e, em contraposição ao reducionismo, a logoterapia se recusa a reduzi-los a fenômenos sub-humanos ou a deduzi-los destes.[23]

E arremata:

A psicoterapia deve mover-se, portanto, aquém da fé na revelação, e a pergunta do sentido deve dar uma resposta aquém da linha que separa de um lado a concepção teísta de mundo e, de outro, a concepção ateísta. Mas se essa pergunta compreende o fenômeno da fé não como uma fé em Deus, senão como a fé num sentido mais amplo, então é perfeitamente legítimo debruçar-se sobre o fenômeno da fé e ocupar-se dele. E isso casa perfeitamente com a afirmação de Albert Einstein, que disse, certa vez, que um homem que encontra uma resposta à questão do sentido da vida é um homem religioso.[24]

É evidente que a falta de iniciativa de Hannah, ou melhor, a sua firme determinação em ir ao encontro de sua morte, pode ser fruto daquilo que os psicólogos chamam de depressão endógena, cujo tratamento, na maioria dos casos, só pode se dar através de medicação antidepressiva. No entanto, de acordo com a Dra. Izar Xausa, pioneira no tratamento logoterapêutico no Brasil:

Devemos advertir, preliminarmente, que há várias causas da depressão e do suicídio, entre elas as orgânicas. Serve como exemplo a depressão endógena, que, originariamente, é causada por fatores bioquímicos, os quais, de algum modo, se explicam pela hereditariedade. Em outras palavras, nem todos os casos de depressão ou de suicídio devem ser atribuídos ao sentimento de falta de sentido. O suicídio pode ser resultante de motivos diferentes da sensação de falta de sentido. Entretanto, mesmo quando o impulso ao suicídio não for por falta de sentido, talvez pudesse ser evitado se a pessoa tivesse consciência do sentido da vida.[25]

Os jovens de hoje precisam, urgentemente, encontrar um sentido para suas vidas. E se esse não era o caso de Hannah Baker, certamente é o da imensa maioria de adolescentes, que hoje passam horas e horas mergulhados na solidão de seus smartphones e na superficialidade acachapante de suas relações.

Há ainda outro aspecto de extrema importância na busca pela superação das frustrações existenciais: a Imaginação. A capacidade de produzir e evocar imagens é fundamental para o desenvolvimento de nosso raciocínio e para a produção de Sentido. De acordo com C. S. Lewis, há uma relação direta entre a imaginação e a razão, sendo esta o órgão da verdade, e aquela exatamente o órgão do sentido[26]. A capacidade que a imaginação tem de produzir metáforas, tem influência direta na qualidade do pensamento que se produz. Diz ele: “A imaginação, produzindo novas metáforas ou vivificando antigas, não é a causa da verdade, mas sua condição”[27].

A esse respeito, Chesterton faz a defesa veemente da leitura de Contos de Fadas como fundamento da Imaginação Moral[28]. Para ele: “Se se realmente ler os contos de fadas, observar-se-á que uma idéia os atravessa de ponta a ponta — a idéia de que a paz e a felicidade só podem existir dadas determinadas condições. Essa idéia, que é o âmago da ética, é o âmago dos contos infantis”[29].

Outrossim, J. R. R. Tolkien — autor da maravilhosa saga O Senhor dos Anéis — nos aponta, em sua teoria da Fantasia (a imaginação em ação), que há três efeitos que a leitura de histórias de fada podem produzir em nós: Recuperação, Escape e Consolo.

A Recuperação é um modo de readquirirmos o deslumbramento, a admiração pelas coisas que se tornaram corriqueiras em nossos dias, coisas com as quais não nos importamos mais, mas que carregam em si mesmas o mistério da vida[30]. A grama verde, a imensidão do mar, o mistérios dos ventos etc.

O Escape fala do desejo de ultrapassar o ordinário e muitas vezes aterrador cotidiano; e nisso as histórias de fada são ótimas. O guarda-roupa para Nárnia foi somente um modo dos irmãos Pavensie escaparem da entediante tarde chuvosa na mansão do professor Kirke, mas também a entrada para um mundo no qual o próprio leitor pode aprender uma infinidade de importantíssimos dilemas morais capazes de forjar o nosso caráter[31].

Por fim, o Consolo, ou, mais precisamente, o Consolo do Final Feliz. Tolkien diz que, assim como a Tragédia é verdadeira forma do Drama, o Consolo do Final Feliz é a verdadeira forma das histórias de fadas. Para facilitar compreensão, Tolkien criou um termo: Eucatástrofe (boa catástrofe), que é a mudança repentina de uma situação de revés ao final de uma história; a alegria do final feliz, que, diferente de ser “escapista” ou “fugitiva”, demonstra uma graça repentina, um milagre[32]. E arremata dizendo que a própria História Cristã é a maior eucatástrofe concebível[33]; que o nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem, e a ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação[34].

Ou seja, a formação da Imaginação Moral, a boa alimentação daquela que o poeta S. T. Coleridge chama de “energia viva e o agente primeiro de toda percepção humana”[35], é fundamental para a uma vida responsável e plena. A Imaginação nos ajuda a encontrar, nas palavras de Russel Kirk, “a justa ordem da alma”.

Quem dera Hannah Baker utilizasse a imaginação como forma de preencher seu vazio interior; quem dera nossos jovens também o fizessem.

Paulo Cruz, maio de 2017

[1] KIERKEGAARD, 1979, p. 203.

[2] KIERKEGAARD, Ibid., p. 216.

[3] “A leitura é por eles destinada a viagens de comboio, doenças, momentos ocasionais de solidão forçada ou para aquele processo a que se dá o nome de ‘ler para adormecer’. Por vezes, a maioria combina a leitura com conversas inconsequentes e, frequentemente, com a audição” (LEWIS, 2003, p. 11).

[4] KIERKEGAARD, 1979, p. 228.

[5] KIERKEGAARD, 1979, p. 229;231.

[6] KIERKEGAARD, Idem, Ibidem.

[7] “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências que são sensíveis para o coração, mas é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência”. (CAMUS, 1989, p. 23).

[8] CAMUS, Ibid., p. 25.

[9] DURKHEIM, 2000, p. 41.

[10] Protagonista do romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther, de J. W. Goethe, que se suicida por conta de um amor impossível.

[11] GOETHE, 2001, p. 72.

[12] http://garotasdireitas.com.br/suicidio-o-que-ninguem-te-contou/

[13] GOEZE, In: MORETTI, 2009, p. 208.

[14] CHESTERTON, 2007, pp. 120–122.

[15] http://entretenimento.band.uol.com.br/tv/noticia/?id=100000853575&t=autor-de-13-reasons-why-explica-cena-de-suicidio-na-serie

[16] FRANKL, 2015, p. 67.

[17] FRANKL, 2015, p. 09.

[18] FRANKL, Ibid., p. 11.

[19] Quero explicar por que tomei o termo “logoterapia” para designar minha teoria. O termo “logos” é uma palavra grega, e significa “sentido”! A logoterapia, ou, como tem sido chamada por alguns autores, a “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia”, concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por este sentido. Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do termo “busca de superioridade”. (FRANKL, 2009, p. 124.)

[20] FRANKL, Ibid, p. 127.

[21] Deparamo-nos aqui com um fenômeno humano que considero fundamental do ponto de vista antropológico: a autotranscendência da existência humana! O que pretendo descrever com isso é o fato de que o ser humano sempre aponta para algo além de si mesmo, para algo que não é ele mesmo — para algo ou para alguém: para um sentido que se deve cumprir, ou para um outro ser humano, a cujo encontro nos dirigimos com amor. Em serviço a uma causa ou no amor a uma pessoa, realiza-se o homem a si mesmo. Quanto mais se absorve em sua tarefa, quanto mais se entrega à pessoa que ama, tanto mais ele é homem e tanto mais é si mesmo. Por conseguinte, só pode realizar a si mesmo à medida que se esquece de si mesmo, que não repara em si mesmo. (FRANKL, 2015, p. 15.).

[22] FRANKL, Ibid., p. 85.

[23] FRANKL, Ibid., p. 87.

[24] FRANKL, Ibid., p. 87.

[25] XAUSA, 2012, p. 73.

[26] For me, reason is the natural organ of truth; but imagination is the organ of meaning. (Bluspels and Flalansferes. In: http://pseudepigraph.us/wp-content/uploads/2015/07/CSL-Bluspels-and-Flalansferes.pdf. Acesso em 23/05/2017.)

[27] LEWIS, Bluspels and Flalansferes. In: http://pseudepigraph.us/wp-content/uploads/2015/07/CSL-Bluspels-and-Flalansferes.pdf. Acesso em 23/05/2017.

[28] […] o que é a imaginação moral? A expressão é de Edmund Burke. Por ela, Burke queria indicar a capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento — ‘especialmente’, como o dicionário a descreve, ‘as mais altas formas dessa capacidade praticadas na poesia e na arte’. A imaginação moral aspira apreender a justa ordem da alma e a justa ordem da comunidade. Foi o dom e a obsessão de Platão, Virgílio e Dante”. (KIRK, 2011, p. 140).

[29] CHESTERTON, 2015, p. 314.

[30] “Precisamos olhar o verde outra vez, e nos surpreendermos de novo (mas sem sermos cegados) com o azul, o amarelo e o vermelho. Precisamos encontrar o centauro e o dragão, e depois, talvez, contemplar de repente, como os antigos pastores, os carneiros, os cães, os cavalos e os lobos. As histórias de fadas nos ajudam a realizar essa recuperação. […] A recuperação (que inclui o retorno e a renovação da saúde) é uma re-tomada — a retomada de uma visão clara. Não digo ‘ver as coisas como elas são’, porque assim me envolveria com os filósofos, porém posso arriscar-me a dizer ‘ver as coisas como nós devemos (ou deveríamos) vê-las’ — como coisas à parte de nós mesmos”. (TOLKIEN, Ibid, p. 65).

[31] Throughout the Narnia chronicles, good characters pay heed to nursery stories and rhymed messages, while evil characters ignore them. […] The chronicles themselves may also serve as faithful guides, illustrating moral failure and moral recovery. Lewis disagreed with the common complaint that fantasy stories are escapist; he felt they might just as easily be used to engage reality as to run away from it. (DOWNING, 2005, p.90 )

[32] “[…] a repentina ‘virada’ jubilosa (porque não há um final verdadeiro em qualquer conto de fadas), essa alegria — que é uma das coisas que as histórias de fadas conseguem produzir supremamente bem — não é essencialmente ‘escapista’ nem ‘fugitiva’. Em seu ambiente de contos de fadas — ou de outro mundo — ela é uma graça repentina e milagrosa: nunca se pode confiar que ocorra outra vez. Ela não nega a existência da discatástrofe, do pesar e do fracasso. Ela nega (em face de muitas evidências, por assim dizer) a derrota final universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do mundo, pungente como o pesar […] Na eucatástrofe enxergamos, numa breve visão, que a resposta pode ser maior — pode ser um lampejo longínquo ou um eco do evangelium no mundo real”. (TOLKIEN, Ibid., p. 77, 79).

[33] “Eu me arriscaria dizer que, abordando a História Cristã nessa direção, por muito tempo tive a sensação de que Deus redimiu as corruptas criaturas-criadoras, os homens, de maneira adequada a esse aspecto de sua estranha natureza, e também a outros. Os Evangelhos contém uma história de fadas, ou uma narrativa maior que engloba toda a essência delas. Contém muitas maravilhas — peculiarmente artísticas, belas e emocionantes: ‘míticas’ no seu significado perfeito e encerrado em si mesmo — e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe concebível. […] O Evangelium não ab-rogou as lendas, ele as consagrou; em especial o ‘final feliz’”. (TOLKIEN, Ibid., p. 81).

[34] Cf.: TOLKIEN, Ibid. p. 80.

[35] COLERIDGE, 1995, p 149.

BIBLIOGRAFIA

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

CHESTERTON, G. K.. Conto de fadas e outros ensaios literários. São Luís: Resistência Cultural, 2015.

____________________ Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

DOWNING, David C.. Into the wardrobe: C.S. Lewis and the Narnia chronicles. San Francisco: John Wiley & Sons, 2005.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 2009.

______________ O sofrimento de uma vida sem sentido. São Paulo: É Realizações, 2015.

GOETHE, Johan Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: L&PM, 2001.

KIERKEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

LEWIS, C. S.. A experiência de ler. Lisboa: Porto, 2003.

MORETTI, Franco (org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

TOLKIEN, J. R. R.. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad, 2006.

XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. Viktor E. Frankl entre nós: a história da logoterapia no Brasil e integração. Rio Grande do Sul: EDIPUCRS, 2012.

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Paulo Cruz
Revista Subjetiva

Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia e educação. Criador do curso online "O Brasil é um país racista?", em www.cursospaulocruz.com.br