“Twin Peaks”: O pecado original é atômico

Oitavo episódio do revival é o Gênese visto através do Apocalipse

Matheus Borges
Revista Subjetiva
5 min readJun 27, 2017

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Charles Ogle em cena de “Frankenstein” (1910).

Seria um exercício inútil de minha parte tentar impor lógica ao que não é lógico. Se eu afirmasse que entendi por completo os eventos da oitava parte de “Twin Peaks: The Return” e me propusesse a explorá-los de maneira dramaturgicamente “correta”, então seu estaria mentindo. Ao longo de sua filmografia, David Lynch se especializou em estimular outro tipo de compreensão no espectador, que pouco tem a ver com a tradição do cinema narrativo norte-americano. Ainda assim, Lynch frequentemente se aproveita de signos desse cinema para criar uma ponte entre dois mundos. Os filmes de Lynch nos fazem contemplar o abismo da linguagem humana, buscam se comunicar conosco através de estímulos que o pensamento lógico não é capaz de processar. Tendo isso em mente, o que se segue é um apanhado de pensamentos soltos que podem ou não chegar a algum lugar.

Cinema de horror na Era Atômica

Durante a primeira metade do século XX, o horror foi estabelecido como gênero cinematográfico. Nesse período inicial, funcionou como uma transposição de histórias e temas explorados anteriormente na literatura e em outras formas de cultura popular. No entanto, Drácula, Frankenstein, bruxas e múmias diziam respeito a um mundo do passado. Ainda que tais histórias tenham ajudado a construir a estética do que se entenderia por cinema de horror nos anos subsequentes, carregavam as preocupações do outrora, um medo que não era um medo adequado ao século XX. Pois o horror do século só pôde ser contemplado em Agosto de 1945, quando Fat Man e Little Boy desceram dos céus e dizimaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.

Não é exagero dizer que a explosão das duas bombas atômicas provocou uma mudança no cinema de horror. Os cogumelos gigantescos tomaram conta do horizonte em todos os cantos do mundo e subitamente o pesadelo de um século estava lá para quem quisesse ver, em fotografias e cinejornais. Apocalipse manufaturado em escala industrial, produzido em conjunto por cientistas, governos e organizações militares. A partir daí, o horror do século não poderia ser personificado por um vampiro ou um lobisomem, por exemplo. Fazer isso seria afirmar que uma criatura sobrenatural fictícia é mais assustadora que a real capacidade humana de impor a morte em massa através da ciência.

A função do cinema, este outro filhote da Revolução Industrial, era a de reinventar seus signos de assombro e direcioná-los ao mal da humanidade. Esse processo pode ser visto como o oposto do processo inicial de construção do horror como gênero cinematográfico. Antes, o cinema havia se apropriado de símbolos preexistentes para produzir um medo contemporâneo funcional. Agora era hora de representar através de símbolos um medo recém criado. Se antes a humanidade tivera tempo suficiente de elaborar seus símbolos para medos elementares, a Era Atômica trouxe consigo um novo tipo de horror em que símbolo e medo haviam nascido ao mesmo tempo. Eram indissociáveis.

Cena de “Twin Peaks: The Return” (2017), episódio 8.

A ruptura dos símbolos

Na oitava parte de “Twin Peaks: The Return”, Lynch e Frost conduzem o espectador a uma viagem pré e pós-simbólica ao horror da Era Atômica. Se observado como algo isolado da série, o episódio funciona perfeitamente como um ensaio visual sobre a mitologia pós-industrial do horror. Agregado ao contexto maior, 37 episódios e um filme, todos eles dedicados a explorar as formas adquiridas pelo horror em meio a uma comunidade, é como testemunhar o Gênese através do Apocalipse.

Vemos o deserto. 16 de julho de 1945. White Sands, Novo México. 5h29min. A primeira explosão de uma bomba nuclear na história da humanidade. A câmera se aproxima lentamente do gigantesco cogumelo atômico. À medida que somos envolvidos pelo vapor da morte, cresce o tema musical dedicado por Penderecki às vítimas de Hiroshima, cada vez mais alto até tomar conta da paisagem sonora e explodir nossos ouvidos. Sucessão de túneis iluminados e difusos, feixes e pontos de luz que atravessam nosso campo de visão.

Adquirimos um ponto de vista subatômico, inumano. Contemplamos a substância pré-simbólica do horror em estado bruto. Algo que não pode ser visto pelos mortais. A criação invertida, capaz de provocar deformidades, câncer, morte e destruição. A partir de agora, um possível fim do planeta inteiro se encontra nas mãos dos homens. A explosão da primeira bomba atômica é o pecado original do universo de Twin Peaks. Também é a única explosão que não funciona como um símbolo. A partir daí, tudo está contaminado. Tanto pelo horror quanto pelos símbolos.

Trent Reznor em cena de “Twin Peaks: The Return” (2017), episódio 8.

Essa longa sequência surge após uma apresentação do Nine Inch Nails. Trent Reznor e sua banda vestem roupas negras em corte militar e óculos escuros, fazem música brutal e confrontativa. A banda é um dos maiores expoentes do gênero industrial — música eletrônica fascinada por máquinas e violência, cuja própria existência também é derivada do trauma coletivo experimentado pela raça humana diante da guerra alimentada por avanços tecnológicos e do uso da ciência como parte da indústria bélica.

A presença do Nine Inch Nails no episódio não é fruto do acaso. Indica que, mais do que qualquer coisa, foi a cultura a mais contaminada pelos símbolos do horror atômico.

P.S.: Bastante possível que eu escreva um segundo texto dedicado a outros elementos do episódio.

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