Um senso de dúvida
Lula é realmente a peça mais importante dessa eleição, mas não da forma que queríamos.
Em 1993, um episódio especial do programa Roda Viva substituía seu convidado ao centro do palco por uma cadeira sem ocupante humano — no lugar do convidado, se encontrava a faixa presidencial: o assunto era o impeachment do então presidente da república Fernando Collor de Melo, o caçador de marajás. Entre os convidados estavam juristas, escritores, jornalistas, ativistas e empresários. Havia um consenso óbvio até mesmo para o mediador: Collor deveria sair; ainda um segundo consenso existia entre alguns dos membros da roda: se Lula tivesse ganho a eleição, o Brasil estaria melhor.
Um líder sindical deu um esporro em um visitante que se recusava a se calar e seguia zombando de Lula, Lygia Fagundes Telles e Millôr Fernandes estavam entre os convidados e o Lindberg Farias se sentava como presidente da UNE e sex symbol nacional. Mas todas as presenças célebres e cenas icônicas daquela mesa são ofuscadas quando colocadas em luz do contexto atual: é mais um dos momentos onde vemos que Luiz Inácio Lula da Silva era a esperança do povo brasileiro para um país melhor. E foi.
É quase consenso entre aqueles que compreendem as capacidades da imprensa no país: não fosse pelo reprise do segundo debate da Globo entre Collor e Lula em 1989, o petista teria vestido a faixa presidencial no final do pleito. “Um flagrante crime contra a ética jornalística”, afirmou um influente nome na imprensa nacional sobre o reprise resumido que, entre outras falcatruas, contou com cortes e destaques que favoreceram Collor. A própria Globo classifica o reprise como erro no Memória Globo. Segundo um documentário britânico, o resumo foi visto por mais da metade da população e ao final contou com dados vagos que indicavam uma supremacia de Collor. Desde então, o nome de Lula já estava na boca do povo.
Foram quatro tentativas antes do desfile rumo ao Palácio do Planalto.
Em diversos momentos registrados da história do país, como o citado na introdução, pode-se constatar uma total confiança de certos setores da sociedade em um governo Lula. Em um país com desigualdades econômicas abismais e uma recém-conquistada democracia — onde sequer se sabia o que se fazer com o poder do voto — a imagem do ex-sindicalista que foi torturado e silenciado ininterruptamente pelo regime militar parecia ressoar como o próximo passo lógico.
O governo foi pacífico e com consenso: a Rede Globo vivia em plena comunhão com o governo; os empresários estavam calmos com a Carta aos Povo Brasileiro e os banqueiros lucravam como nunca. Os pobres se alegravam com o welfare fornecido pelo governo e faziam graduações aos montes. O governo de Lula foi o fatídico tributo ao mote de Getúlio Vargas: pai dos pobres, mãe dos ricos.
Apesar da gestão econômica duvidosa — com a inflação de oligopólios e a contestada forma de atuação de certos programas sociais — o governo Lula também foi marcado pela quase erradicação da miséria no país e uma estabilidade econômica e social que garantiram a consolidação do soft power diplomático do país e sua hegemonia na América Latina e entre os países lusófonos. Na mão de um tipo socialista, o país se tornou quase potência imperialista e um dos maiores nomes no capitalismo global.
Indicou, como sucessora espiritual, a ex-guerrilheira e ministra da fazenda Dilma Vana Rousseff — única pessoa além de Collor a ganhar um Roda Viva especial de impeachment, dessa vez com um tom bem mais lúgubre. Mesmo não contando com o carisma ou a habilidade política de Lula, Dilma ainda trazia em si o rosto do ex-presidente. Seu histórico lutador e sua posição como primeira mulher a ocupar o cargo máximo do executivo nacional a deram certa credibilidade junto à esquerda e os setores progressistas da sociedade, mas a bomba criada no governo de Juscelino Kubitschek e delicadamente armada durante todos os governos até os do próprio PT explodiu.
Pouco antes de uma apertada reeleição, começaram-se as Jornadas de Junho, nossa própria versão da Primavera Árabe e a reencenação da clássica epopeia que advinha dos Diretas Já e dos Caras Pintadas. MBL, ator pornô sentando com Ministro da Educação, Bolsonaro e todas as aberrações políticas que atualmente são vistas na política nacional emergiram nessa explosão. Um Big Bang de instabilidade política com nosso próprio toque tupiniquim. A “república de bananas” que Gleisi Hoffmann afirmou que a prisão de Lula iria instaurar já existia faz tempo — um de seus ápices foi a farra das empreiteiras durante o governo petista, com eventos esportivos globais sendo sediados no país e toda a atenção da mídia internacional. A ficha caiu tarde: a política do Brasil sempre foi análoga à mais rude das comédias políticas que existiram no terceiro mundo durante a Guerra Fria, mas atenção: isso não é crônico.
Após ser considerada a esperança do país e segurar em seus dedos a estabilidade nacional, a maior figura da política latino-americana desde Simón Bolívar decidiu que não queria brincar de RPG se não fosse o mestre. Elegeu uma sucessora com clara inépcia para o cargo e agora protagoniza o que o candidato do PDT à presidência popularizou como “valsa na beira do abismo”. Foco de toda a insegurança política das atuais eleições, Lula é responsável indireto até mesmo pela iminente vitória de Bolsonaro: se o onipotente líder petista tivesse aceitado sua inelegibilidade — seja ele culpado ou não — ou ao menos não tivesse sabotado alianças e feito desleal rivalidade com outros membros da esquerda, o capitão da reserva sequer veria seu nome entre os primeiros colocados da lista.
Lula ameaçou prender jornalistas e cercear os direitos de imprensa — “prender Lula será violência para o mundo”, disse a presidente do PT. Ademais, todo um jogo de poder no já frágil cenário político brasileiro é feito dentro do cárcere em Curitiba. Olhando de longe é fácil de se ver: nos candidatos ao pleito desse ano existe uma verdadeira chance de renovação, o fim do presidencialismo de cooptação, reformas importantes aprovadas com legitimidade e uma revisão do gigante ineficaz que é o Estado Brasileiro. Com a atenção das massas voltadas para si e as ações de agentes de suma importância nas eleições sendo guiadas por seu dedo, Lula impede que o bem maior suceda em nome de seu próprio projeto de poder.
Ouvi certo dia uma trágica anedota: para quem assiste um louro verde falando com uma senhora todos os dias, a liderança de um presidiário nas eleições já está sendo esquisita — agora imagine para um gringo! A comunidade internacional já viu faz tempo: o Brasil se comporta como uma republica de bananas em certos momentos. Nosso leviatã anêmico não passa despercebido por esses mares e somos para o mundo o que a Rússia foi para a Europa durante o século XIX: um gigante dos pés de barro.
Andamos um avanço significativo rumo a uma nação mais saudável, e as próximas eleições asseguram a continuidade disso. Será isso, ou iremos precisar de um simulacro de revolução das mais sangrentas da história dentro de nossas fronteiras. A depender de Lula, a revolução terá que ocorrer.
Fica a dúvida: culpado ou não de corrupção, Luiz Inácio Lula da Silva vem sendo um orgulho para aqueles que diziam que ele iria salvar todo o país com a mais pura abnegação? Ou estaria ele fazendo um favor ao inimigo? Faz sentido um homem que verdadeiramente se importa com a nação dar margem a um perigoso inimigo apenas por algumas noites no Palácio da Alvorada?