Uma breve discussão sobre não binariedade e terror
Quando tudo parecia tão repetitivo, decidi ir a favor da maré e revistar alguns diretores. De Wes Craven à Dario Argento. Procurando em suas listas, as preciosidades que me fizeram gostar deles e também o que havia de diferente para ser consumido. Foi assim que me deparei com Benção Mortal (1981), filme de Wes Craven que já desenha a carreira do diretor ao lado de Freddy Krueger.
Mas, o que me chamou a atenção não foram as diversas cenas que, postas em paralelo com A Hora do Pesadelo (1984), mexem com o saudosismo de qualquer fã da franquia. Pelo contrário, o que despertou meu interesse foi a sexualidade da antagonista. Na história, uma jovem que acaba de perder o marido, é atormentada por forças sobrenaturais junto de suas amigas. No fim, e me permito dar esse spoiler, a antagonista, surgida com um plot twist não tão original, evidencia seus motivos em dois pilares: (1) ser uma espécie de bruxa/demônio e (2) ter um interesse romântico na protagonista.
Não existe motivo algum para a sexualidade da personagem surgir naquele momento. Não há proximidade física ou emocional das duas para que isso aconteça. Na verdade, todas as cenas das personagens, quando estão juntas, beira ao raso e desconfortável. Não existe lógica para a sexualidade da personagem além de que para Hollywood, nos anos 80, sexualidade e não-binariedade já eram razão o suficiente para ser um “monstro”.
Esse tropo vai se repetir diversas vezes no cinema de terror; seja no nosso querido Anthony Perkins como Norman Bates até o não tão memorável filme, A Última Casa da Rua (2012), com Jennifer Lawrence.
Entendo que o “gênero ou sexualidade como um pesadelo”, o “não-binário como um vilão”, perpassa a ficção. Tópicos como a “cura gay” é uma prova disso. Assim como nos trinta anos que separam Benção Mortal e A Última Casa na Rua, os debates de gênero vão muito além. E por isso, me vi questionando como essa não-binariedade como antagonista não só corroboram para a imagem de “travesti perigosa” e afins, mas também confundem existências fora da binaridade de gênero, ao pintá-las como, ironicamente ou não, confusas.
Mas, por outro lado, se o medo do não-binário ganha as telas com sangue e vísceras, há outro lado que fomenta um debate, ou que pelo menos, me faz constantemente questionar o meu próprio corpo. Como diz Frank N. Furter, em Rocky Horror Picture Show (1975): “Não se deixe levar pela minha aparência; Não julgue um livro pela capa; Eu não sou muito homem à luz do dia; Mas à noite, eu sou um grande amante”.
Mesmo que Tim Curry não seja de fato um travesti, de Transexual, Transylvania, sua performance com botas de couro e corset nos lembra que não ter definições também é uma definição. E de certa forma, o olhar horrorizado de Janet e Brad nos lembra de outra construção do horror que aborda o corpo além do binário: o body horror.
O subgênero apresenta, intencionalmente, violações gráficas ou psicologicamente perturbadoras do corpo humano. Mesmo que nas telas, a compreensão desse “transhumanismo”, referenciando Trans (2021), só vá dar as caras de forma gráfica e assustadora através de cenas famosas como a transformação em Um Lobisomem Americano em Londres (1981) e Ginger Snaps (2000); ou o incômodo da transformação de Jeff Goldblum em uma mosca de A Mosca (1986); no mundo do body horror existe um medo ao não conformismo, a mudança, a transformação. Bom, todos esses termos também estão numa existência não binária.
“Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação; É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto; Tá sempre em desconstrução”, Linn da Quebrada. Infelizmente, essa desconstrução não é tema quando tentamos unir o movimento LGBT+ e o terror. Pelo contrário, como já foi visto, esse corpo como vilão é o que, de alguma forma, vai se sobressair.
E talvez, por isso, esse texto não seja sobre “Os dez melhores personagens não-binários no horror” ou “O que Buffalo Bill significa para o movimento LGBT+ no terror”, mas talvez um pedido para uma nova onda de filmes de lobisomens, de alienígenas transexuais, de histórias que tracem um paralelo, mas também uma convergência no terror e no que é ser não-binário. No que é se ver em dois mundos e ao mesmo tempo, em nenhum.
Talvez, o que nos falte para criar novos ícones LGBT+ no cinema de terror, que fujam de uma única existência branca e gay, sejam novas percepções. Filmes de lobisomem, por exemplo, possuem em seu cerne a não-conformidade com o corpo adquirido. Ginger Snaps é claramente sobre a puberdade feminina, mas na mão do diretor e roteirista certo, poderíamos falar sobre horror e transexualidade, sem a necessidade de uma vilanização desse corpo já tão estigmatizado.
Parece estranho terminar com um “pedido” como esse quando começamos falando sobre lesbianismo em um filme de Wes Craven, mas parece ser o momento certo para se construir novas narrativas que não se construam apenas numa demonização do gênero e da sexualidade. Já vemos um pouco disso no filme de baixo orçamento Bit (2020), mas a existência desse texto já mostra que, queira ou não, esses longas — fora da curva — , não parecem possuir tanta voz quanto os demais.
E de certa forma, foi assim para Jordan Peele no início. Mas, poder ver mais filmes e produções unindo o medo do que é “ser uma pessoa negra no mundo contemporâneo” com o “horror fictício” — e eu não incluo Them nesse movimento — é importante para compreender outras dimensões de existência que não se resumem a morrer primeiro ou ser vilão.
Mas, o maior horror de toda essa situação é perceber que ainda estamos tão atrasados quanto os debates de gênero em espaços políticos. Mesmo que o horror seja o gênero da transgressão, ainda caminhamos devagar para mudanças representativas.