Uma canção para Emília

José Tadeu Gobbi
Revista Subjetiva
Published in
4 min readOct 20, 2021
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As noites de São Bernardo
nunca foram acolhedoras,
tanto descampado no mundo,
tanto sertão e litoral
e foi nesta cidade
que nos encontramos.

Não que não amássemos este lugar e seu
ar meio acre de cidade operária
com suas chaminés descarregando fuligem
em intensa atividade noturna
para não serem vistas à luz do dia.

É que tínhamos olhos pra ver que, por onde andávamos,
ônibus fretados de grandes multinacionais
conduziam moças tristes
para as fábricas que cercavam a cidade
como um oceano.

Moças que sonhavam encontrar um amor em São Bernardo
e somar seu salário com o salário do seu amor
para juntos alugar casa, formar família,
e fazer um churrasco no fim de semana.

Sabíamos o destino das moças de São Bernardo,
sua missão de gerar filhos metalúrgicos
para construir o futuro do país.
Filhos que reproduziriam o destino dos seus pais,
de envergar um macacão azul
com o logotipo de uma multinacional no bolso.

E, apesar disto, as moças sonhavam
e na sexta feira se enchiam de perfume, roupa bonita
e de esperança,
porque esperança é coisa boba
que cabe no silêncio dos ônibus fretados.

A gente se acostumou a ver
o orgulho do migrante com seu macacão azul
pegar o primeiro salário
e comprar um carrinho inteiro de coisas no supermercado
e, ao chegar em casa, espalhar tudo no quintal,
tanta fruta, tanto biscoito, leite e macarrão,
e as crianças olhavam para tanta coisa colorida,
tanto gosto diferente da farinha com feijão,
e era muito, minha amiga,
demais pra quem teve a estrada como última salvação.

E tudo aquilo que se tinha
que era pouco, o coração dizia que era muito,
então dava pra sonhar,
porque a vida podia ser mais que os corredores escuros da metalúrgica,
mais que o barulho medonho das chapas de aço sendo moldadas.

Só que era pouco, porque a vida tem que ter passarinho e liberdade,
tem que ter canção pra alegrar a alma e amizade pra aquecer o coração.
A vida não usa macacão azul com logo de multinacional
não usa crachá
não toma ônibus fretado
nem bate ponto em corredores escuros.

E pras moças de São Bernardo
pensativas e quietas,
que seguiam com seus olhares tristes
nos ônibus fretados,
era bom respirar sem sentir fome,
mesmo com aquele odor acre de fundição,
aquele odor acre de vida fudida.

E pra consolo tinha a capelaria empresarial
trazendo um Cristo operário
com macacão azul e logo de multinacional no bolso.
Uma santa igreja para guardar nossas almas
dos pecados terrenos a dizer que
ambição é pecado e pobreza é virtude.

Cristo nasceu numa manjedoura
nas noites operárias de São Bernardo
onde você fazia faculdade e continuava torneiro mecânico
ia trabalhar num emprego melhor mas continuava peão
viajava para o exterior
mas ainda era metalúrgico,
filho de operário que, como gado marcado,
todo mundo sabe de qual fazenda chegou.

E nós com nossos sonhos pequeno burgueses,
queríamos cursar uma faculdade,
e alcançar o mundo além da nossa aldeia operária.
Coisas pequenas como fazer planos num país desigual
nas noites operárias de São Bernardo.

Queríamos ser como os navegadores das potências coloniais
mergulhando nossas naus em oceanos desconhecidos
a buscar terras novas
sem uma carta náutica para nos guiar,
cartógrafos de um mundo novo que só
existia em nosso coração.

Queríamos amar Fernando Pessoa,
entender Sartre e Patativa do Assaré,
e conhecer os filósofos buscando
uma explicação para nossa dor de existir
num mundo que somava pouco e muito tirava
de nossas ambições.

Nós que nascemos sob o coturno dos centuriões
que se autoproclamavam guardiões de nossa liberdade,
a nos dizer o que podíamos ler ou falar ou pensar.
E nós tão jovens jamais acreditamos que precisávamos de tutores
jamais nos conformamos com o silêncio das baionetas.

E tanto tempo se passou desde então
desde que nossos caminhos se dividiram,
desde que descobrimos que a cidade já não cabia mais em nós,
que não queríamos mais aquele mundo cheio de muros,
queríamos o mundo todo.

Como eu lamento, Emília, não ter entendido sua última mensagem
quando você se desculpou por se ausentar mais e mais e
marcou a última letra da frase com um aterisco
que remetia para um esclarecimento que se esqueceu de acrescentar.

Na frase seguinte você fechou com reticências “Você ainda estará no meu coração…” não usou um ponto final, não encerrou a frase.
Não precisava. Estava tudo escrito nas noites de São Bernardo.

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José Tadeu Gobbi
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Publicitário, um brasileiro que crê em valores republicanos e num país que valorize honestidade, competência e talento. Bom te ver por aqui.