Uma música, um conto
Quem foi Eleanor Rigby?
Eleanor ia pegando grão por grão com uma atenção imutável. Estava ajoelhada na escada de pedra úmida, mas parecia não se importar com a mancha escura que ia se formando em sua saia. Inclinada para frente com as costas formando uma corcunda, ela observava atentamente as comissuras escuras da pedra molhada de orvalho em busca de mais grãos de arroz para guardar em seu cesto. Os cabelos se desprendiam do laço e caiam ao redor de seu rosto, uma cortina impenetrável que escondia sua face excessivamente magra.
- Bom dia, Eleanor.
A jovem tomou um susto quando a voz de trovão do padre McKenzie relampejou ao seu lado. Ela levantou o rosto com a velocidade de um raio e encarou o homem ao seu lado, assustada demais para falar. O padre reconheceu o susto em seus olhos arregalados e riu.
- Me desculpe, menina. Nunca consegui aprender a falar baixinho.
Eleanor pensava que uma voz baixinha tinha muito mais a ver com o ambiente silencioso da igreja, onde todos falavam cochichando com medo dos anjos escutarem. Todos, menos o padre McKenzie, que sempre falava gritando com sua voz de tenor. Mas Eleanor não disse isso, porque estava acostumada a guardar seus pensamentos para si. Simplesmente sorriu fracamente enquanto o padre McKenzie a observava com carinho. “Tão magra, tão pálida… Quando vão levar essa menina ao médico?”.
- O que está fazendo, Eleanor?
A jovem levantou a cesta. Um quarto dela estava cheio de grãos de arroz sujos. O padre a fitou confundido por alguns segundos até se lembrar do casamento que celebrara no dia anterior.
- Você não vai cozinhar isso, verdade Eleanor? Porque é certo que esse solo é sagrado, mas nem o chão mais abençoado está livre de pó e imundice.
Eleanor se apressou em negar com a cabeça. Como o padre seguia ali, encarando o cesto com expressão curiosa, ela limpou a garganta e falou com a voz sussurrada que guardava para a igreja:
- Dizem que traz boa sorte. — explicou.
O padre assentiu.
- Você quer se casar também, Eleanor?
Ela não respondeu, mas suas bochechas rosadas sim. O padre sentiu um assomo de tristeza que não soube da onde veio e nem o que fazer com ele. Tratando de disfarçar, ele começou a juntar grãos de arroz ao seu redor, mas perdia a maioria e não encontrava quase nenhum. Sua vista não era mais a mesma e o padre McKenzie nunca teve muita paciência pras tarefas meticulosas. Seus talentos estavam na escrita, na interpretação, na criação de sermões inspirados que amava ler com toda paixão para uma congregação quase inexistente. Naquele vilarejo perdido, as pessoas haviam se acostumado a se preocupar menos por suas almas e mais por seus pratos vazios. Mas isso não incomodava o padre McKenzie. Depois de alguns minutos, ele colocou o punhadinho minúsculo de grãos que havia juntado na cesta de Eleanor e limpou as mãos na batina.
- Não posso ajudá-la mais, menina. Tenho que preparar o sermão de domingo. Você vai vir?
Eleanor agradeceu com um aceno e disse que sim, ali estaria. A igreja era um dos poucos lugares onde ela se sentia bem, então não perdia uma missa. Mesmo que não entendesse nem a metade das coisas que o padre gritava do púlpito.
Depois que ele se foi, Eleanor deu uma olhadela no cesto e suspirou. O dia continuava gelado, como todos os dias de inverno, mas pelo menos agora os raios de um sol tímido chegavam até ela. A menina endireitou as costas, lembrando de como a diretora do orfanato sempre a repreendia por sua postura. Por uns instantes Eleanor fechou os olhos, tentando imaginar que o casamento do dia anterior havia sido o seu e que o arroz que ela agora recolhia tinha sido jogado nela e no seu formoso marido enquanto caminhavam sorridentes rumo a um futuro brilhante e feliz. Ela tentou, mas a imagem se esfumaçou rapidamente. O frio do piso de pedra lhe entrava até os ossos e a saia molhada já não a defendia. Com um arrepio, Eleanor voltou a se ocupar dos grãozinhos que ainda podia salvar. Sonhos eram para os privilegiados. Ela precisava de toda a sorte que pudesse conseguir.
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