Uma visita de domingo
- 3 cebolas médias picadas em pequenos cubos
- 2 colheres fartas de manteiga (pode ser margarina)
- 1 kg de frango (pode ser qualquer parte)
- Tempero a gosto
Simples assim. 4 ingredientes. Serviria até para chamada de vídeo de youtube de receitas fáceis e práticas para iniciantes na arte da gastronomia caseira de domingos repetitivos de quarentena.
(Aqui estaria uma pausa para desejar que você esteja lendo esse texto num tempo onde quarentena seja só uma lembrança.)
Se você, leitor, me conhece, já deve saber que não gosto de cebola. E para você que não me conhece, a verdade é que sempre fui radicalmente contra o uso da cebola na cozinha, como tempero ou qualquer coisa que seja, e também sempre fugi das armadilhas de disfarce que vira-e-mexe tentam enganar os olhares atentos de quem consegue identificar uma lasca de cebola a distância. Nenhuma onion ring entrelaçada em tiras de bacon me apetece, também.
Não me perguntem porque, mas sempre foi assim. Era muito comum, enquanto crescia, ter refeições separadas em casa feitas pela minha mãe retirando qualquer vestígio de cebola do caminho. Ainda assim, um prato muito emblemático para minha memória e minha lembrança imediata sempre foi o frango na manteiga, feito pela Lia, minha mãe.
Sabe aquele sentimento que você lembra detalhe a detalhe do que ele causa em você mas que você não sente mais? Pra mim é a sensação de desconfiança ou total ignorância sobre o que seria o prato do almoço de domingo na casa dos meus pais. Se tivesse que resumir meus domingos da infância, adolescência e início da vida adulta eu diria que era uma sequência bem delineada de preguiça de sair da cama, download de músicas na internet e um fluxo rápido de suspense e surpresa ao sair do quarto e descobrir o que minha mãe estava já preparando na cozinha. Já atrasada, já irritada, já acelerando o inevitável almoço as 15 horas de domingo.
A melhor surpresa, sem dúvida nenhuma, era descobrir que o prato do dia seria o frango na manteiga. E como boa contradição na minha vida, esse era o prato que só existia por causa da cebola. Sua base aromática vinha das cebolas picadas em pequenos cubos cozidas ao extremo (um tico antes de queimar) na manteiga derretida. A estrutura brilhante do molho vinha das cebolas em contato com a água fervendo adicionada junto com o frango recém temperado. O tom marrom peculiar do frango cozido a perfeição (um tico antes de desfiar) vem das cebolas que de transparentes, passaram a douradas e ao marrom avermelhado da quase queimadura. Não tinha escapatória: nada que eu amava no prato existia sem a presença da cebola, que no processo de cocção já havia desaparecido sem rastro e vestígio da panela.
Com a ajuda da minha tia, depois de uma ligação as 23 horas de um sábado e a dica valiosíssima de adicionar um fio de azeite a manteiga derretendo para evitar que a gordura queimasse, lá fui eu preparar a surpresa mais gostosa dos meus finais de semana. A medida que a cebola borbulhava na gordura da manteiga e ganhava tons de dourado, a minha cozinha, a 490 km de distância da cozinha que minha mãe cozinhou com gosto todos os dias da sua vida, dividiram o mesmo aroma, o mesmo vapor e o mesmo borbulhar de panelas enquanto eu experimentava um sentimento que eu sabia detalhe a detalhe, mas que era completamente novo pra mim.
Acho que eu nunca aproveitei a chance de falar para minha mãe mas esse frango era meu prato favorito dela. Mas é bem provável que ela já sabia, na época. Se ela não sabia, é bem provável que ela tenha descoberto hoje — afinal, o cheiro das receitas dela vão (muito) longe.
E no fim, eu acabei derrubando algumas lágrimas.
Era muita cebola pra ser cortada mesmo.