Você Não é uma Empresa e Não tem Obrigação de Dar Lucro
Existem inúmeras questões que surgem por vivermos numa sociedade capitalista. Concentração de renda, degradação ambiental e exploração dos trabalhadores são apenas algumas delas.
Hoje, porém, não falaremos diretamente de nenhuma dessas. Focaremos em noções essencialmente mais psicológicas e subjetivas do que as citadas acima. Trataremos das alterações em nosso modo de interagir com o mundo que surgem quando temos nossas mentes colocadas a serviço da lógica do desempenho e da produtividade. Comecemos por algo que chamo de:
1 — OPORTUNIDADE ONIPRESENTE DE CAPITALIZAR
E é bem o que o nome diz mesmo. Numa sociedade capitalista TUDO é visto como oportunidade de conseguir (mais) dinheiro. Não dá para ser apenas bom de inglês, é preciso dar aulas. Nem se pode só gostar de fotografia, precisa-se montar um negócio.
O capitalismo sequestra nossas paixões e as insere nessa lógica de mercado em que tudo o que fazemos só é válido se der para ser vendido… e com lucro.
“Mas, se você gosta de algo, porque não ganhar dinheiro com isso?”
Existem vários motivos. Porque nem tudo é mercadoria, porque viver é mais que produzir visando lucro e fazer algo que se gosta muitas vezes é completamente diferente que fazer algo que vende.
No entanto, não é apenas sequestrando nossas paixões que essa lógica corrompe nossas mentes. Ela também transforma a forma como encaramos nosso tempo.
2 — INVISTA SEU TEMPO NO QUE ̶ ̶A̶M̶A̶ POSSA TE TRAZER ALGUMA VANTAGEM
Se eventualmente tudo o que você faz pode ser algo para ganhar dinheiro, então a consequência lógica é que, a menos que você esteja efetivamente trabalhando para tornar isso realidade e lucrar, você está desperdiçando potencial e tempo de vida.
“Vai fazer um curso. Alimenta esse currículo”.
Você precisa de uma segunda língua. Vai aumentar seu salário.
Você lê? Porque não aproveita pra ler “Pai rico, pai pobre” e descobrir meios pra melhorar financeiramente?”
O prazer (ou desprazer) que a atividade te proporciona, pouco importa. O seu tempo está a serviço de conseguir algo com aquilo.
Você não aprende Francês porque gosta da língua e quer ter mais contato com a cultura. Não, você aprende para colocar no seu currículo e tentar obter um emprego melhor ou um aumento. Você não faz faculdade porque realmente quer fazer, faz pela possibilidade que aquilo tem de lhe trazer frutos adiante.
Nessa noção empresarial do próprio ser, nós somos tanto a própria empresa, quanto seu principal investidor. O objetivo é o lucro e para isso investimos no que pode trazer mais dele no curto, médio e longo prazo.
Ou seja, vivemos o presente tentando lucrar com o que já podemos e nos empenhando em criar oportunidades para ganhar mais ainda depois.
Vivendo com essa noção distorcida de como nosso tempo deve sempre servir para gerar algo, não é incomum também pegar-se, toda hora, tendo que justificar o que se está fazendo, para conseguir ficar bem consigo mesmo.
Eu mesmo já me peguei tendo que justificar que ler bastante não era um desperdício do meu tempo, citando os benefícios da leitura para o cérebro e como aquilo me fazia adquirir mais vocabulário…Bizarro, não é por isso que eu leio. Eu leio porque amo. Essa resposta devia bastar.
3 — OS FISCAIS PRO BONO
Por último, também parece que atrelamos a capacidade de ser improdutivos e nos divertirmos à condição de já termos produzido anteriormente. Como se nos déssemos permissão.
“Ta tudo bem assistir série agora, já trabalhei o dia inteiro”
“Fui pro escritório a semana toda, posso passar o final de semana sem fazer nada”
É como se tivesse, dentro de cada um de nós, um fiscal pro bono cuja função é checar se cumprimos nossas metas de produtividade do período e se poderemos então desfrutar daquilo que queremos fazer.
Com o aprofundamento dessa lógica, não é incomum também que mesmo depois de termos sido produtivos (o que nos daria permissão ao ócio), procuremos por lazeres e passatempos em que poderemos seguir desempenhando. Nossas leituras, hobbies, atividades, são ditadas pelo senso de “o que posso aprender com isso?” “o que isso vai somar na minha vida” “como isso pode me deixar mais rico”?
Tudo parece se encaminhar para essa mesma perspectiva utilitarista da vida.
Os riscos da incorporação impensada dessas maneiras utilitaristas já estamos vendo. As pessoas nunca estiveram tão cansadas, frustradas e deprimidas. A Depressão já é vista como o mal do século. A síndrome de Burnout, outra neurose interna, parece ser uma resposta especificamente endereçada aos modos da sociedade do desempenho. Ao menos, essa é uma das conclusões de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, em seu livro “sociedade do cansaço”.
O que podemos fazer, então?
Bom, quando crianças nosso único mote era conseguir o máximo de diversão que pudéssemos antes do dia acabar e sermos chamados de volta para casa. Em algum ponto perdemos essa capacidade de fazer as coisas descompromissadamente, apenas pelo prazer que elas nos geram no momento, sem um grande plano por trás. Talvez seja hora de recuperá-la.