4 Poemas de Pedro Juan Gutiérrez — traduzidos por Daniel Rodas (Coluna Travalínguas)

Revista Sucuru
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9 min readJun 27, 2023

Publicado originalmente na edição mensal Nº21 da Sucuru (Novembro-2022)

O poeta Pedro Juan Gutiérrez (Fonte: A Escotilha)

Mais conhecido no Brasil pelos seus romances — em especial A Trilogia Suja de Havana (1998), O Rei de Havana (1999) e Fabián e o caos (2015) — Pedro Juan Gutiérrez é também um excelente poeta, tendo firmado seu nome entre as figuras mais destacadas da lírica hispano-americana nas últimas décadas.

Adepto de uma linguagem crua e cortante, onde se mesclam coloquialismos e imagens ao mesmo tempo belas e sufocantes, a poesia de Gutiérrez se insere, assim como seus romances, naquilo que se convencionou chamar de “realismo sujo”: uma tendência literária que parte de estruturas minimalistas e da “linguagem essencial” para investigar os meandros das relações humanas a partir do cotidiano. Ainda que, se tratando de Gutiérrez, nem sempre seja possível classificá-lo nesse rótulo, é inegável que algumas dessas características perpassam sua obra, sobretudo no tocante às temáticas e à caracterização das personagens.

Assumindo a postura de porta-voz poético da Cuba pós-revolução — mas, certamente, não num sentido “oficial” — Gutiérrez retrata em seus poemas os sentimentos de solidão, revolta e miséria que assolaram a ilha durante o “período especial” da década de 1990, quando o país sofreu com a grave crise econômica desencadeada pelo fim da União Soviética e o recrudescimento do embargo estadunidense. Em meio à pobreza e à fome generalizadas, Gutiérrez captou em seus poemas o drama coletivo de um povo que, tendo sonhado — e vivido — os anos da Revolução, agora se via imerso numa realidade estranha, suja, onde os antigos ideais chafurdavam na luta quase darwiniana pela sobrevivência.

Tal atmosfera se faz presente, por exemplo, no primeiro poema, Sinal de Perigo (“Señal de Peligro”), onde o eu-lírico lamenta não ter forças nem disposição para escrever “belos poemas bucólicos”, uma vez que se vê obrigado a retratar a situação ao seu redor com a dureza de um “punhado de vidros rotos”. Já no segundo poema, Fãs (“Fans”), temos, num tom algo bukowskiano, uma descrição dos dias de fama do poeta, agraciado como um ídolo pela juventude — em especial a feminina — de seu país, algo que ele próprio, como afirma no poema, “não entende”. No terceiro poema, Expresso Noturno (“Expreso Nocturno”), há uma interessante construção imagética que tenciona as figuras dos “belos pássaros negros”, que o poeta tenta trazer para o papel, com a descrição memorialística de uma viagem “sufocante” à Rússia, na qual podemos ler, novamente, uma metáfora para o contraste entre o desejo de escrever uma poesia “bela” e a necessidade de expurgar os próprios demônios, por parte do poeta comprometido com o seu tempo. Por fim, o quarto poema, Caçador (“Cazador”), reforça a perspectiva de luta pela sobrevivência, ao mesmo tempo em que descreve o poeta como uma espécie de “caçador de miseráveis”, cuja única poética possível, num mundo em ruínas, é escrever a partir de suas “presas”: os flagelados que circulam ao seu redor.

No geral, portanto, temos na escrita de Gutiérrez uma perspectiva algo sombria da vida, ainda que iluminada, vez por outra, por breves momentos de lirismo, onde a poesia se insurge não como uma janela, mas como uma corda atirada ao mar em tempestade.

A seguir, quatro poemas de Pedro Juan Gutiérrez, vertidos por mim do espanhol:

*

Sinal de Perigo

Seria lindo este poema

se fosse um punhado de névoa,

um punhado de amêndoas.

Um desses belos poemas bucólicos, lentos, vegetais,

atravessados pelo cheiro do milho,

por um jorro de água, por um jarro de leite fresco.

Porém não é nada disso.

Este poema não está escrito no ar,

nem nas estrelas, nem na noite.

Não lhe espera uma mulher terna, doce e úmida,

que me dará seus sucos quando o ler.

Nada disso.

Este poema está riscado no cimento da cidade paralisada,

É corrosivo e se desgasta, se perde no ácido.

Este poema uiva agora mesmo,

E sangra solitário à meia-noite sobre Havana.

A cidade cai em pedaços de silêncio.

A fome sobre o asfalto e a gordura.

Em meio coração passa o desespero de todos.

Este poema é um punhado de vidros rotos

que aperto

e esfola minhas mãos.

Este poema de merda me levanta uivando da cama.

Me levanta rugindo, desvelado, sem poder dormir, meu Deus.

Estou cansado, confuso, com fome, sem dinheiro.

Impotente às doze da noite,

com o horizonte em sombras.

Posso jogá-lo fora. Não sei.

Preciso dormir, porém não posso.

Este punhado de vidros rotos me esfola as mãos.

Estremecido por tantos ruídos, corroído,

já pressinto a guerra próxima.

Quanto ódio cai em chumbo sobre nós!

E eu na fronteira

na mesma beira do precipício.

Soltando minha elegia infernal, feito pantera noturna.

Desejando que Deus apareça,

já sem mais remédio. Que apareça.

Que dê um sinal.

Que me lance uma corda

Em meio à tormenta e ao naufrágio.

[De Espléndidos peces plateados (1994)]

*

Señal de Peligro

Sería hermoso este poema

si fuera un puñado de niebla,

un puñado de almendras.

Uno de esos hermosos poemas bucólicos, lentos, vegetales,

atravesados por la fragancia del maíz,

por un chorro de agua, por un jarro de leche fresca.

Pero no es nada de eso.

Este poema no está escrito en el aire

ni en las estrellas ni en la noche.

Ni lo espera una mujer tierna, dulce y húmeda,

que me dará sus jugos cuando lo lea.

Nada de eso.

Este poema está arañado en el cemento de la ciudad paralizada,

Es corrosivo y se desgasta, se pierde en el ácido.

Este poema aúlla ahora mismo,

se desangra solitario a medianoche sobre La Habana.

La ciudad se cae a pedazos en silencio.

El hambre sobre el asfalto y la grasa.

Por mi corazón pasa el desespero de todos.

Este poema es un puñado de vidrios rotos

que aprieto

y me desangra las manos.

Este poema de mierda me levanta aullando de mi cama.

Me levanta rugiendo, desvelado, sin poder dormir, Dios mío.

Estoy cansado, confundido, con hambre, sin dinero.

Impotente a las doce de la noche,

con el horizonte en tinieblas.

Puedo lanzarlo todo por la borda. No sé.

Necesito dormir pero no puedo.

Este puñado de vidrios rotos me desangra las manos.

Estremecido por tantos ruidos, corroído,

ya presiento la guerra próxima.

¡Cuánta carga de odio cae a plomo sobre nosotros!

Y yo en la frontera,

en el mismo borde del precipicio.

Soltando mi elegía infernal, como una pantera la noche.

Deseando que Dios aparezca,

ya sin más remedio. Que aparezca.

Que dé una señal.

Que me lance un cabo

en medio de la tormenta y el naufragio.

De Espléndidos peces plateados (1994).

*

Fãs

Uma de minhas admiradoras mais loucas

tatuou na nádega direita

uma frase tirada da Trilogia Suja:

“É impossível desprender-se do que foi amado”.

Antes fez que eu escrevesse isso em um papel

e o enviasse pelo correio.

Agora me enviou a foto

Com a pele ainda avermelhada.

Junto à foto há uma nota:

“É como se tivesse escrito em mim

Com a sua caneta”.

Não entendo.

Suponho que meu ego infla

e ronrona satisfeito como um gato gorducho

que se lambe e se espoja de prazer.

Hoje estou no metrô,

como sempre, na linha 5

até Carabanchel

e há uma linda garota

que observo. Concentro toda

a luxúria e a perversidade do mundo

em meus olhos. Vejo ela suave e nua.

E ela, com um sorriso inocente

e compassivo, me diz:

“Quer sentar-se, senhor?”

Meu Deus!

Não posso acreditar.

[De Morir en París, 2007]

*

Fans

Una de mis admiradoras más locas

ha tatuado en su nalga derecha

una frase que sacó de Trilogía Sucia:

“Es imposible desprenderse de lo que se ha amado”.

Antes hizo que yo escribiera eso en un papel

y se lo enviara por correo.

Ahora me envió la foto

con la piel aún enrojecida.

Junto a la foto hay una nota:

“Es como si hubieras escrito sobre mí

con tu bolígrafo”.

No entiendo.

Supongo que mi ego engorda

y ronronea satisfecho como un gato grasiento

que se lame y se revuelca de placer.

Hoy voy en el metro,

como siempre, en la línea 5

hacia Carabanchel

y hay una hermosa muchacha

a la que miro. Concentro toda

la lujuria y la perversidad del mundo

en mis ojos. La veo desnuda y dulce.

Y ella, con una sonrisa inocente

y compasiva, me dice:

“¿Quiere sentarse, señor?”

¡Dios mío!

No me lo puedo creer.

[De Morir en París, 2007]

*

Expresso Noturno

Uns estranhos pássaros negros

de bico vermelho,

belos e aerodinâmicos,

sobrevoam o mar

esses dias.

Há mais deles a cada manhã.

Planam com suas asas abertas,

confiantes e perfeitos.

Suponho que se reúnem

para regressar em maio à América do Norte.

Comento com a minha mulher

que agora os observa

e lança um veredito:

“Não são daqui

Nunca os tinha visto”.

Passo para ela os binóculos

Mas não lhe interessa observar

em detalhes.

Depois, à noite,

tento escrever um poema

sobre os belos pássaros negros

que pescam sardinhas no Caribe.

É um tema agradável e sutil.

Assim poderei desviar

meu olhar insistente

dos escombros do inferno

para algo luminoso.

Porém não sai. No papel

aparece um poema muito curto

sobre uma viagem noturna de trem,

de Leningrado à Lituânia. Isso faz anos.

Não aconteceu nada.

Só que não pude dormir.

A calefação era excessiva

e eu me afogava em meu beliche

enquanto o trem passava sem deter-se

por uns pequenos povoados escuros, com névoa e frio.

Às vezes se detinha uns dois minutos.

E eu olhava as plataformas desoladas.

As grandes estepes russas não existiam

naquela escuridão absoluta.

Lá fora a neve e o vento.

E eu me afogava.

Quase não podia respirar

aquele ar denso e quente.

Foi uma noite agoniada, estranha

um pouco absurda.

[De El último misterio de John Snake (2008–2009)]

*

Expreso Nocturno

Unos extraños pájaros negros

con el pico rojo,

bellos y aerodinámicos,

sobrevuelan el mar

en estos días.

Cada mañana hay más.

Flotan con las alas desplegadas,

confiados y perfectos.

Supongo que se reúnen

para regresar en mayo a Norteamérica.

Lo comento con mi mujer

que apenas los mira

y lanza un veredicto:

“No son de aquí.

nunca los había visto”.

Le paso los binoculares

pero no le interesa observar

con tanto esmero.

Después, por la noche,

intento escribir un poema

sobre los hermosos pájaros negros

que pescan sardinas en el Caribe.

Es un tema agradable y sutil.

Así podré desviar

mi persistente mirada

desde los escombros del infierno

hacia algo luminoso.

Pero no sale. En el papel

aparece un poema muy corto

sobre un viaje nocturno en tren,

de Leningrado a Lituania. Hace años.

No sucedió nada.

Solo que no pude dormir.

La calefacción era excesiva

y yo me ahogaba en mi litera

mientras el tren pasaba sin detenerse

por pequeños pueblos oscuros, con niebla y frío.

A veces se detenía dos minutos.

Y yo miraba los andenes desolados.

La gran estepa rusa no existía

en aquella oscuridad absoluta.

Afuera la nieve y el viento.

Y yo me ahogaba.

Casi no podía respirar

aquel aire denso y tibio.

Fue una noche agónica, extraña,

un poco absurda.

[De El último misterio de John Snake (2008–2009)]

*

Caçador

Preciso subir ao alto de uma torre.

Faço isso sempre.

Me instalo lá em cima

e observo como se movem os animais.

Sou um caçador.

Vermes, depredadores, caroneiros

são minhas presas mais apreciadas.

Os animais nobres me aborrecem.

Os outros fedem.

Adrenalina pura.

Observo com atenção seus movimentos,

seu pensamento,

suas geringonças incessantes.

Depois, atormentado, me afasto

e já não posso dormir.

Sem sono, escrevo sobre esses loucos

e não entendo.

Nunca. Não mais.

De outra torre, escondido no mato,

outro caçador me observa. Um franco-atirador.

Usa uma mira telescópica. Algo perfeito.

Não há erro.

[De Cazador y otros poemas (2016)]

*

Cazador

Necesito subir a lo alto de la torre.

Lo hago siempre.

Me instalo allá arriba

y observo cómo se mueven los animales.

Soy un cazador.

Alimañas, depredadores, carroñeros

son mis piezas más preciadas.

Los animales nobles aburren.

Los otros apestan.

Adrenalina pura.

Observo con atención sus movimientos,

su pensamiento,

sus jerigonzas incesantes.

Después, atormentado, me alejo

y ya no puedo dormir.

Desvelado, escribo sobre esos locos

y no entiendo.

Nunca. Ya no.

Desde otra torre, escondida en la espesura,

otro cazador me observa. Un francotirador.

Usa una mirilla telescópica. Algo perfecto.

No hay error.

De Cazador y otros poemas (2016).

***

O TRADUTOR

Daniel Rodas é escritor, poeta e dramaturgo. Graduado em Letras e Mestrando em Literatura e Interculturalidade (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata, 2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021). Integrou as antologias Poesia fora do eixo (Toma Aí Um Poema, 2022), Engenho Arretado: poesia paraibana do século XXI (Patuá, 2023) e Casa Encantada: o conto fantástico paraibano (Arribaçã, 2023). Tem textos publicados em vários meios eletrônicos nacionais e internacionais, a exemplo das revistas Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Toró, Subversa, Kuruma´tá, Entreverbo, Trajanos, Aboio, Literarte (Argentina) e Granuja (México). Fez parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colaborou como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida.

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