“Bookstagram: afinal de contas, para que serve isso?” — uma reflexão sobre a leitura (Coluna de Benício Gon)

Revista Sucuru
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6 min readJul 16, 2021
Imagem: Flow Magazine

“BOOKSTAGRAM”: AFINAL DE CONTAS, PARA QUE SERVE ISSO?

Calma minhas amigas e meus amigos: eu não estou aqui para falar mal daquele bookstagram que você não sabe mais viver sem, nada disso. Aqui vai apenas uma singela opinião de um cara que não teve preguiça para visitar muitos — e quando digo muitos, são muitos mesmo! — perfis de Instagram supostamente montados para falar de livros.

Pois bem, para iniciar esta conversa é necessário recuarmos no tempo e viajarmos para a época em que “a internet era mato”. Quando falo nesse tal recuo no tempo me refiro ao período da história em que os blogs reinavam absolutos, mostrando-se como a plataforma ideal para que as pessoas escrevessem sobre os mais variados assuntos de forma democrática. Foi a partir daí que inúmeros espaços nesse formato acolhendo resenhas literárias surgiram e, pasmem: eles de fato falavam sobre livros! O sujeito lia um determinado título, ruminava umas ideias, digeria o assunto, filosofava e só então dava suas impressões seguidas de uma discussão deliciosamente edificante promovida pelos leitores. Infelizmente essa fase ficou no passado.

Quando o Instagram começou a se transformar numa das redes sociais mais utilizadas no mundo ocorreu um fenômeno desastroso. Aquele pessoal que se dedicava a ler os livros de verdade, escrever resenhas bem elaboradas e promover debates acalorados não mudaram de mala e cuia para o novo espaço como era de se esperar. O que aconteceu foi o estabelecimento de novos usuários — note que disse “usuários”, não leitores vorazes ou críticos de literatura — escrevendo análises literárias cada vez mais superficiais, ao mesmo tempo em que os blogs literários foram minguando até sua (quase) extinção.

E o que temos na atualidade? Hoje em dia o texto bem feito, a boa concatenação de ideias, o posicionamento a respeito do tema central do livro, nada mais importa. O que de fato faz a diferença para que o bookstagram bombe é a foto. Sim, a foto. Quanto mais conceitual e elaborada a imagem do post se mostrar, mais cliques ela garantirá. Dane-se o que você escreveu.

É tarefa das mais fáceis constatar essa dura realidade. Para que você me entenda, faça a seguinte experiência: pegue uma imagem bem bonita que tenha ou não a ver com um livro que você gosta, recorte e cole um texto qualquer na legenda e espere. Em segundos você garantirá diversas curtidas de gente que está “andando” para o que você teoricamente tenha escrito, a pessoa simplesmente deu like por conta da figura, não leu nada.

Além disso, é muito comum ver situações bizarras como, por exemplo, o da pessoa que posta a imagem de um livro famoso para depois escrever um texto poético em homenagem à avó que o adorava.

Linhas abaixo chovem comentários do tipo “Excelente resenha, adoro esse livro!” ou “Concordo com você, também é um dos meus livros preferidos.”… Ou seja, ninguém deu a mínima para o texto, simplesmente as pessoas fizeram comentários baseados em suposições sobre imagem que viram para fazer média com quem postou, buscando simpatia e engajamento. Chega a ser constrangedor.

Agora, sobre os perfis de bookstagrammers, a verdade é que a maioria deles é feita para falar de muitas coisas, menos sobre livros. Se você der uma conferida nos espaços com mais seguidores, logo perceberá que há uma espécie de padrão. Esse formato repetitivo envolve, como disse linhas acima, fotos muitíssimo elaboradas de livros em cenários incríveis que conquistam seu clique instantaneamente. Quem resiste ao ato de dar uma curtida numa edição luxuosíssima em capa dura de Edgar Allan Poe em cima de uma mesa colonial antiga onde um belíssimo corvo se encontra em pé ao lado de um crânio humano realista? É até covardia, o like vai no automático.

Outro ponto a se observar é a utilização da beleza feminina ou masculina como recurso comum para o clickbait. Nada contra a beleza, muitíssimo pelo contrário, mas chovem perfis de sucesso onde os seus donos usam e abusam da sedução física para conquistar seguidores. Você pode colocar um livro de apologia ao nazismo nas mãos do bookstagrammer, não tem problema; os cliques virão em avalanche de qualquer jeito. Adeus reflexão. A conquista de seguidores pela imagem funciona e é utilizada violentamente, sem o mínimo resquício de ética para quem ganhou na loteria genética.

Até aí tudo bem, vivemos inseridos num contexto democrático e todo mundo dá like no que quiser, Deus seja louvado. O problema é que na grande maioria das vezes as resenhas dos livros são completamente destituídas de sentido, expondo opiniões genéricas, muitas vezes contraditórias. Isso se dá pelo simples fato de que o autor do post não leu o livro, ele apenas fez o ctrl+v, ctrl+c da sua sinopse, pois ele já percebeu pelas reações cotidianas do seu público que está numa situação confortabilíssima: finge que lê e os seguidores também fingem terem lido, montando uma teia de mentiras baseada na filosofia do “não li, mas gostei” onde não existem vencedores, apenas derrotados, intelectualmente falando.

Fora isso, há outra situação também bastante desconfortável e que merece ser registrada. O aumento exponencial de seguidores tem como efeito colateral atrair o assédio das editoras. Buscando sempre aumentar seus lucros as empresas se dispõem a aproveitar a visibilidade do perfil de sucesso para patrociná-lo, recebendo em troca comentários sobre os seus produtos. É aí que a mágica acontece. Por motivos óbvios, você jamais verá uma crítica isenta sobre um livro da patrocinadora. Tudo vira um jogo de dar e receber para que se estimule a venda de livros que nunca serão lidos.

Dentro desse universo surrealista de mentiras existe também um mercado literário baseado no consumismo desenfreado. Chovem vídeos com estantes belíssimas e modernosas, cheias de livros com capas incríveis, posicionados estrategicamente nas prateleiras. Como uma espécie de mantra a ser repetido, a maioria deles deve se referir a seriados de sucesso, filmes ou temas ligados ao universo pop teen. Claro que não podem faltar os bonecos de personagens espalhados por todo o canto, placas, quadros, luzinhas e toda aquela tranqueira linda que a gente ama para compor um cenário gostoso demais de se ver. Não comprar nada é praticamente uma heresia.

Ainda falando dos vídeos, existem os que mostram os tais “recebidos”. Neles, o dono do perfil abre uma caixa maravilhosa cheia de objetos de desejo de qualquer ser humano de senso médio que curte o universo literário e mostra em tempo real o que ganhou de alguma editora ou mesmo comprou em numa megastore. A inveja manda lembranças.

Isso tudo estaria dentro da normalidade, se um detalhe importantíssimo não estivesse sendo omitido: todo mundo compra, nem que seja em incontáveis prestações, mas quase ninguém lê. Diante de tudo isso eu confesso que, de verdade, não sei onde as coisas irão parar. De um lado ansiamos que novas gerações de leitores, críticos e escritores sejam formadas, de outro, assistimos as redes sociais fingindo tratar de assuntos literários relevantes quando na realidade estão pregando sobre o nada absoluto no deserto árido de ideias fúteis.

Talvez a saída para os verdadeiros amantes da literatura seja garimpar os perfis até encontrar os que de fato tratam o assunto com a seriedade que ele merece. Eles existem, pode acreditar. Como diria Gonçalves Dias em seu extraordinário poema “Juca-Pirama”: Meninos, eu vi!

Enquanto isso, seguiremos aos trancos e barrancos com nosso amor sem limites pela literatura. Nesse caminho tortuoso, obstinadamente nos desviaremos dos desfiles de moda imitando lançamentos de livros, falsas resenhas, ostentações pretensiosas, consumismos vazios e pobreza de ideais. Carregaremos nosso estandarte com o orgulho de quem, como em Matrix, tomou a pílula vermelha.

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Benício Gon nasceu na capital paulista em 1971, mas mora há mais de trinta anos no interior de Minas Gerais. Atua como advogado, mas se autodenomina um “enfileirador de palavras”. Escreve desde sua juventude e teve diversos textos publicados em jornais ligados à cultura e educação. Além disso, é autor de artigos publicados em sites de renome ligados às ciências jurídicas. Foi premiado no concurso literário “Cem Anos Da Abolição” e recentemente foi um dos vencedores do concurso “Me Conte Um Conto” com sua obra intitulada “Eu Te Odeio, Max Planck!”. Suas influências na literatura vão de Dostoiévski, Saramago, Kafka, Augusto dos Anjos até Stephen King e Alan Moore.

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