Catalogando as espécies humanas ou O ser humano em extinção — resenha do livro “Catálogo de Pequenas Espécies” de Tiago Germano, por Daniel Rodas

Revista Sucuru
Revista Sucuru
Published in
3 min readOct 23, 2021
Foto: divulgação (Editora Caos e Letras)

Sempre achei o ser humano um bicho tremendamente esquisito. Talvez o mais estranho dos bichos. Somos os únicos bichos capazes de criar facilidades tecnológicas na mesma medida em que criamos dificuldades — também tecnológicas. Somos os únicos bichos que criam regras inúteis com o único objetivo de atravancar as próprias ideias. Somos os únicos bichos que fazem guerra — no sentido generalizado. Somos os únicos bichos que odeiam — principalmente por motivos abstratos. Somos os únicos bichos genocidas.

Para não ficarmos, porém, no terreno do pessimismo — somo os únicos bichos pessimistas? — podemos afirmar algo positivo: somos os únicos bichos que produzem literatura. E nossa fauna literária, repleta de vozes dissonantes e cores diversas, por vezes nos brinda com reflexões quase darwinianas sobre a nossa existência. É o que faz o paraibano Tiago Germano no seu espetacular “Catálogo de Pequenas Espécies” (Editora Caos e Letras, 2021).

Primeiro livro de contos de Tiago Germano — que também é jornalista, romancista e cronista, autor dos romances A Mulher Faminta (2018) e O que pesa no norte (2020), além do livro de crônicas Demônios Domésticos (2017) — Catálogo de Pequenas Espécies se propõe a ser, logo de cara, um catálogo: uma lista, uma enumeração de seres. Mas de quais seres? De quais espécies?

Talvez apenas as múltiplas variações de uma mesma espécie: a humana. O ser humano em suas muitas faces/comportamentos.

Trata-se, portanto, de um projeto ambicioso. Afinal, como catalogar as diferentes “espécies” de ser humano, ao mesmo tempo em que dialoga com a relação entre o animal humano e o humano-animal? E os animais não-humanos? Sim, pois há muitos animais não-humanos na obra de Tiago Germano. Temos elefantes, tartarugas, leões, cães. Sobretudo, cães. Como o protagonista genioso do conto de abertura “Até os lobos uivam quando estão sozinhos”, um dachshund bagunceiro que adora comer a casa, não por acaso muito semelhante a César, o cão de estimação do autor — ou seria o autor o humano de estimação do cão? — a quem o livro é dedicado.

Capa de “Catálogo de Pequenas Espécies” / Foto do escritor Tiago Germano

No decorrer das duas partes da obra — a primeira intitulada “Taxonomia”, e a segunda, “Cadeia Alimentar” — Germano constrói um verdadeiro panorama do comportamento humano, e, sobretudo, brasileiro, na contemporaneidade, discutindo temas como o machismo, a infância, a desigualdade social, a memória, as inseguranças sexuais, a relação ambígua com a tecnologia, a perpetuação dos discursos opressores, e a (opressiva) política nacional. Esta última, tema dos contos “Terrivelmente Evangélico”, “Germes” e “Continência” — três dos melhores textos da obra — é tratada a partir de uma perspectiva madura, crítica e bem fundamentada, oscilando entre a ironia e o debate, ao mesmo tempo em que põe a nu as mazelas do fascismo e da torrente de ódio que se alastrou em nosso país desde as eleições de 2018 — e que parece ainda estar longe do fim.

Compondo um mosaico de figuras humanas nem um pouco caricatas, a partir da ótica privilegiada de quem escreve no calor da hora, Tiago Germano nos traz uma obra profundamente reflexiva, complexa e bem escrita, capaz de arrancar o riso e a indignação do leitor na mesma medida.

Catálogo de Pequenas Espécies é, portanto, uma lista espelhada da nossa realidade, um estudo estético do que nós somos — do que nós fomos — e do que aparentamos ser.

*

Catálogo de Pequenas Espécies

Autor: Tiago Germano

Editora Caos e Letras (2021)

216 p.

*

Daniel Rodas (Teixeira-PB — 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata, 2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021), tem textos publicados em vários meios eletrônicos, a exemplo das revistas Mallarmargens, Ruído Manifesto, Toró e Subversa. Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida.

--

--