Três poemas de Alfred de Musset — traduzidos por Daniel Rodas (Coluna Travalínguas)

Revista Sucuru
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5 min readNov 19, 2022
O poeta Alfred de Musset (Fonte: Wikipedia)

O texto e as traduções a seguir foram publicadas originalmente no Nº19 (Edição Mensal / Setembro-2022) da Revista Sucuru

Nome de destaque do romantismo francês — mas ainda pouco traduzido em terras tupiniquins — Alfred de Musset (1810–1857) é um poeta singular. Dono de uma dicção que oscila entre o frescor e a sobriedade, sua escrita é marcadamente romântica, com poemas que abordam temas como o amor, a juventude e a decadência, por vez com um tom levemente filosófico.

Parisiense legítimo — nasceu e morreu na capital francesa — Musset viveu o período de grande efervescência política e literária da França na primeira metade do século XIX, convivendo com artistas de renome em sua época, a exemplo de Victor Hugo, Alfred de Vigny e Charles Nodier. Alcançando grande fama ainda em vida, percorreu o caminho “típico” dos poetas românticos franceses: viveu de forma boêmia e desregrada, escandalizando a sociedade do seu tempo com relacionamentos furtivos — um deles com a romancista George Sand — e morrendo jovem e quase esquecido, aos quarenta e sete anos, deixando uma obra de destaque para ser reavaliada na posteridade.

Os três poemas a seguir — o primeiro extraído da coletânea Les Nuits (1837) e os dois seguintes das Poèsies Nouvelles — estão entre os mais conhecidos do autor, sendo bastante representativos de sua poética. Em A Cortina da Minha Vizinha (“Le rideau de ma voisine”), temos uma cena furtiva, quase que um instantâneo verbal, no qual o eu-lírico observa, através do balançar suave de uma cortina, o semblante da mulher que deseja. Tomado de esperanças românticas, o eu-lírico se põe num rápido devaneio, mas é cortado subitamente pelo choque da realidade: a amada já ama um “lourdaud” (“tolo”, “estúpido”, aqui traduzido pela gíria “mala”) qualquer.

Já no segundo poema, Tristeza (“Tritesse”), há a predominância de um tom vagamente filosófico/existencial: a tristeza do eu-lírico é marcada pela consciência agridoce da Verdade, do conhecimento profundo que expõe a fragilidade das ideias e concepções humanas, sobretudo, quando confrontadas com a imagem divina. A temática amorosa retorna no terceiro poema, Marie (“Marie”), onde o eu-lírico se utiliza de alusões românticas — e simbolicamente eróticas — para descrever a mulher amada, culminando na imagem intensa e algo panteística do último verso: a Amada, sob a ótica extática do amado, “brilha e se confunde com o céu”. Nos três poemas, portanto, temos como fio condutor a tensão entre realidade e desejo, verdade e ilusão, macro e micro, através de elementos que se mesclam numa imagética discursiva aparentemente ingênua, mas detentora de grande profundidade.

Considerando meus conhecimentos ainda intermediários na língua francesa — sou, de fato, um tradutor enxerido de primeira viagem — busquei traduzir esses poemas com o máximo de esmero possível, ainda que, por respeito aos tradutores profissionais, os considere mais como “experimentos tradutórios” do que como traduções propriamente ditas. Sendo assim, no decorrer do processo de tradução, optei por manter o ritmo e os sentidos gerais do poema, sem grande preocupação com a métrica — algo que para mim, como poeta, é dispensável — adotando, aqui e ali, soluções e adequações linguísticas que possibilitassem uma releitura adequada do sentido original em nossa língua.

Sem mais delongas, eis a seguir o resultado da minha empreitada:

*

A Cortina da Minha Vizinha

Inspirado em Goethe

A cortina da vizinha ao lado

Vai se erguendo lentamente

Ela vai — eu penso e calo –

Tomar ar na varanda em frente

.

Da janela que se abre:

Eu sinto o coração palpitar

Talvez ela saiba — quem sabe!

Que eu estou a espiar

.

Mas ah! Estou delirando

Minha vizinha ama um mala

E é o vento que vai levantando

O canto da cortina da sala.

*

Le Rideau de ma Voisine

Imité de Goethe

Le rideau de ma voisine

Se soulève lentement.

Elle va, je l’imagine,

Prendre l’air un moment.

.

On entr’ouvre la fenêtre :

Je sens mon coeur palpiter.

Elle veut savoir peut-être

Si je suis à guetter.

.

Mais, hélas ! ce n’est pas qu’un rêve :

Ma voisine aime un lourdeau,

Et c’est le vent qui soulève

Le coin de son rideau.

*

Tristeza

Perdi a minha força e existência.

E meus amigos. E minha alegria.

E até mesmo o orgulho que existia

Na crença da minha inteligência.

.

Quando vi, a Verdade, certa vez

Pensei encontrar nela uma amiga

Mas eis que ao tocá-la uma ferida

Abriu-se e o encanto se desfez.

.

Mas ela é ainda assim, eterna e bela.

E aqueles que porventura fogem dela

Terão talvez tudo ignorado.

.

Por ela Deus fala o que é profundo

E tudo o que me resta deste mundo

E ter vez por outra assim chorado.

*

Tristesse

J’ai perdu ma force et ma vie,

Et mes amis et ma gaieté;

J’ai perdu jusqu’à la fierté

Qui faisait croire à mon génie.

.

Quand j’ai connu la Vérité,

J’ai cru que c’était une amie ;

Quand je l’ai comprise et sentie,

J’en étais déjà dégoûté.

.

Et pourtant elle est éternelle,

Et ceux qui se sont passés d’elle

Ici-bas ont tout ignoré.

.

Dieu parle, il faut qu’on lui réponde.

Le seul bien qui me reste au monde

Est d’avoir quelquefois pleuré.

*

Marie

Assim, como a flor da primavera

Que surge na floresta, renascendo

Ao primeiro sopro-Zéfiro, florescendo

Um sorriso de mistério ela era.

.

E ao seu caule tão fresco e tão suave

Sentindo num instante, quando a vejo

Seu cálice na terra que se abre

Tremendo de alegria e de desejo.

.

Assim, quando Marie, a minha amada

Entreabrindo o lábio, tão querida

Com seus olhos azuis, olha pro léu

.

Em harmonia e luz, cheia de vida

Parece que sua alma, minha amiga

Brilha e se confunde com o céu.

*

Marie

Ainsi, quand la fleur printanière

Dans les bois va s’épanouir,

Au premier souffle du zéphyr

Elle sourit avec mystère ;

.

Et sa tige fraîche et légère,

Sentant son calice s’ouvrir,

Jusque dans le sein de la terre

Frémit de joie et de désir.

.

Ainsi, quand ma douce Marie

Entr’ouvre sa lèvre chérie,

Et lève, en chantant, ses yeux bleus,

.

Dans l’harmonie et la lumière

Son âme semble tout entière

Monter en tremblant vers les cieux.

*

Daniel Rodas (Teixeira-PB / 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Graduado em Letras (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata, 2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021). Integrou a antologia Poesia fora do eixo (Toma Aí Um Poema, 2022). Tem textos publicados em vários meios eletrônicos nacionais e internacionais, a exemplo das revistas Mallarmargens, Ruído Manifesto, Toró, Subversa, Kuruma´tá, Entreverbo, Trajanos, Aboio, Literarte (Argentina) e Granuja (México). Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida.

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