Fernando Salles
Revista Transversal
5 min readFeb 22, 2019

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12 passos

1

A menina dança livremente na sala: um corpo móvel de oito anos. O irmão mais novo a observa. Dedos agitados. Olhos agitados. Sorrisos. Mariana tira esse short e vai botar uma calça pra esconder esse cu! olha seu irmão aí! A mãe grita de algum lugar. A menina sai, sem entender. O menino fica na sala, entendendo. Na televisão as mulheres rebolam com suas roupas pequenas. O ritmo não chama mais a atenção. É proibido.

2

Os dedos movem rapidamente o joystick. Dois tiros. O menino joga videogame no quarto mesmo sem fazer a lição de casa. Mais um tiro, sniper: fica ligado. A mãe abre a porta do quarto. Já fez o dever de casa? Já. Mentira. Outro tiro de sniper. A mãe fecha a porta. Ele se agita tentando encontrar seu inimigo: um tiro certeiro, está fora. Fica irritado e se joga na cama. Levanta e sai do quarto. Puto. Na cozinha a irmã lava a louça. Bebe um copo de água e o deixa em cima da pia. A irmã questiona, puta. Ele sai. Já lavou essa louça? Pergunta a mãe. A irmã faz o dever e ainda lava a louça, ele não. Azar o dela. Senta na cama e recomeça a missão: onde se escondeu esse filho da puta?

3

Você só quer saber de namorar, Mariana! Porrada. Puxão de cabelo. A irmã arrumou um namorado na escola: treze anos ela e ele quatorze. Escola é lugar de estudar! A mãe descobriu porque Mariana contou. O menino ria enquanto Mariana apanhava. Não to criando filha pra ser piranha não. Ele já tinha ficado com as meninas na escola, mas não falava pra mãe. Alguns amigos já estavam até comendo umas e outras. você tenha postura de mulher! Queria comer alguém também. Mariana era burra. Era só não falar nada.

4

Botou um brinco na orelha. A mãe não gostou e brigou com o garoto: a orelha é minha. A mãe bateu, ele segurou a mãe: já era mais alto e mais forte, uns quatorze anos. Vai bater porque se a orelha é minha? O pai veio e discutiu, ele tirou o brinco em casa. Fora de casa eu uso o que eu quiser. E usava. Na escola, na rua, nas festinhas. Foda-se, a orelha é minha. Não era trouxa igual a Mariana que chorava calada sem fazer o que queria.

5

Reunião na escola com direção e pais: a gente dá tudo pra ele. O menino não estuda em sala, não estuda em casa. Bate papo o tempo todo. Eu não gosto de estudar. As notas baixas estão ficando cada vez piores. A postura do seu filho é de falta de respeito com todos da escola. Frases e frases e frases e frases. Eu quero mudar de escola. Muda. Falta pedagogia da escola, falta pulso da escola. Esse é o lugar onde recai a culpa. A mãe sai de mãos dadas com o filho.

6

Está ficando com duas meninas ao mesmo tempo. Falou pros amigos: tu é maluco. Ambas as meninas marcaram uma briga por causa dele. Ele ri. A mãe em casa sabe e não fala nada. A irmã dele disse para ambas as meninas que ele não vale nada. Na hora da briga marcada ele vai até o lugar: filma a discussão das duas que saem na porrada. Ele ri. Elas param e choram, saem do lugar envergonhadas.

No dia seguinte fica com outra menina na escola na frente delas.

Ele ri.

7

Terceira reprovação seguida no primeiro ano do médio. Falsifica a assinatura da mãe quando chega em casa. De novo. A mãe pergunta sobre a escola e ele diz que tá tudo bem. Fez matrícula no supletivo. Tá arrumando um emprego com um amigo e vai continuar de noite. Estudar é um saco. Se pudesse só comia as menina e trampava de vez em quando. Isso é que é vida.

8

No trabalho conhece Patrícia: bonita, simpática, mora só com a mãe. Ela é caixa na farmácia que ele entrega _ a mãe deu uma moto quando ele disse que precisava. Joga um charme na mina, ela cai. Beija e fala um monte de coisa romântica, ela cai. Fode com ela várias vezes e acha bom. Ela reclama às vezes, mas quer deixar ele feliz. Quer sair de casa, alugar uma parada, ficar com a Patrícia só pra ele. Fala com a mãe que orgulhosa o ajuda.

9

Sozinho com Patrícia: a mina reclama demais. Quer que ele faça coisas que ele não faz. Já trabalha, já se esforça, já faz o que é possível. Quer mais o que? Eu também trabalho e cuido da casa sozinha. Patrícia é reclamona, mas é dele. É a mina dele, de mais ninguém. Aguenta ela reclamando enquanto tem comida feita, casa limpa, contas pagas, sexo bom e carinho dela. Tá ruim?

10

Patrícia continua reclamando sem parar. Você não me ajuda em nada. Chata pra caralho. Cara, tu deixa tudo largado em tudo quanto é canto. Tava querendo ter um filho com ela e ela saiu de ideia dizendo que não tinham grana pra isso. Ele disse que a mãe ajudava, mas ela não quis. Larga esse futebol e me ajuda aqui, cara. Puto. Tava puto já com a Patrícia. Filha da puta. Porque não queria ter um filho com ele? Tava arrumando outro? Ela desliga a TV: vai me ajudar ou não? Ele empurra ela sobre o armário da sala. Ela olha, assustada. Tô cansando de tu, já.

De noite pede desculpas, faz sexo, diz que ama e que tem ciúmes. Vai cuidar dela daqui em diante.

11

Patrícia tem outro. Repete essa frase na cabeça dele umas vinte vezes por hora. Filha da puta. Ela tem outro. Na moto pela cidade é só isso o que pensa. Cada cara que olha na rua pode ser um amante. Pensa se ainda ama Patrícia. Pensa no que tá fazendo da vida… A Patrícia é minha. Chega de moto no novo trabalho dela na hora da saída. Ela tá falando com um maluco. É esse filha da puta? Que? Mete o capacete na cara dele. Ela tem macho seu arrombado. Para! Ele pega ela e coloca em cima da moto. Sai. Entra em casa e dá a primeira porrada. Tá me traindo né! Para! Tá me traindo, né! O rosto dela sangra e ele para. Deixa ela no chão. Filha da puta… Acha que eu sou trouxa?

12

Ela saiu de casa, foi pra casa da mãe. Foi na polícia escondida quando disse que ia pro trabalho. Deixou roupa e tudo o que tinha no apê. Ela tá me traindo essa filha da puta. Corta um carro e desce a estrada. Ligou para a mãe que deu meia razão para ele: mulher que trai o homem é vagabunda. Não falou da surra. Eu sempre soube que ela era uma filha da puta. Desce uma avenida de casas. Me traindo. Isso não vai ficar assim não. Mulher minha ninguém mexe. Para a moto, saca o trinta e oito e confere as balas. Pula o portão da casa da mãe de Patrícia.

Mulher minha ninguém mexe.

No interior da casa ouve-se seis disparos.

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12 mulheres são vítimas de feminicídio todos os dias no Brasil.

Denuncie a violência doméstica, ligue 180.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva