A jaqueta, de noite

Paloma Palacio
Revista Transversal
4 min readApr 24, 2019

A Lore se ergueu de súbito, equilibrando dois pratos sujos, um em cada mão, e disse, “não, não conta essa história! Me deixa triste…”, e saiu do quarto num trotar de pés.

-Mas você acha mesmo?!

-Por que, é triste, é? Débora perguntou, sorrindo um pouco.

-Ah pronto, ela agora fica louca, Sândalo…

-É sim, eu gosto de histórias tristes. Particularmente das muito tristes mesmo.

Primeira coisa que notei na Débora é que ela tinha uma mania infantil de te olhar de baixo e sorrir como criança atrevida, quando dizia algo que achava diferentão. Não chegava a me irritar porque, antes, achava sexy. Tipo um infantil sexy, ou… sei lá.

-É pornografia pra ela, na verdade, isso que você quer dizer, veio dizendo a Lore, agora de volta ao quarto semiluminado daquela noite de quarta-feira. Tinha duas velas, uma em cada mão.

-Olha, foi o seguinte: eu saía do metrô e vi um pai e o que parecia sua filha tomando um sorvete na padaria da esquina. Notei que eles tinham a roupa muito arrumada, por isso me fisgaram logo de cara.

-Sei do que você tá falando…

Lorena falava sempre assim…

-Alguém ainda passa roupa, será?, Débora perguntou entre minirisos e microrosnados.

Eu e Lorena trocamos olhares sem querer, confesso que não entendi, e assim seguiu.

-Taí, na mosca: a roupa deles tava estupidamente bem passada. Eram roupas simples, mas o vinco da calça do pai, você via de longe, era uma linha reta perfeita. Não existia amassado ali.

-Ali onde?

-Naquele universo, daquela família, respondi.

-Essa é a parte triste?

-Mais ou menos. Sei que fiquei bodado o resto do dia mesmo.

-Ok, cara, mas tenta explicar: por quê?

Lorena gesticula muito, já com o cigarro de estimação aceso na mão direita. Lore, Lore… se você fosse menos agressiva…

Esqueci de uma informação importante: Débora costumava estar chapada. Soube depois, quando a gente se pegou na entrada do prédio e eu ofereci uma pontinha e ela disse que tinha fumado já o dia inteiro mas, sim, aceitava queimar mais aquela. À essa altura, no entanto, ela ainda fingia interesse na minha história.

-É, eles pareciam estar passando fome, pedindo dinheiro ou algo assim?

-Não, não era isso… O pai tinha roupas muito simples, é verdade, um camisão e uma calça. Usava um tênis branco antigo, mas, é isso, inacreditavelmente limpo. A menina, na hora, olhava pra garçonete do restaurante em frente, que cruzava a rua… Ela se vestia mais descolada que o pai, mais adolescente, mas assim, com o mesmo minimalismo. Uma calça, uma camisa amarrada na cintura, uma camiseta neutra. Não sei o que houve.

-Lorena, era essa história triste que você me prometeu?

-Era… Você nunca disse, San, eles eram negros?

-Eram.

-Então. Vocês conseguem imaginar?…

Nós dois, brancos, balançamos a cabeça. Não sei porque fiz isso, já que não precisava imaginar, a memória era minha.

Peço licença a quem lê agora, vou ceder meu espaço de narração pra Lore por alguns instantes. Não acho que ela tenha matado a charada da minha desinteressante anedota melancólica, mas, no fim, voltei a me sentir assim. Acho que todos nós, os três, que escolhemos ficar alijados do mundo naquele quarto no Centro em plena meiuca de semana útil, acabamos assim.

“Minha avó sempre conta a história da única jaqueta do meu bisavô. Eles eram muito pobres, ele era camelô e sustentava assim a família inteira. Isso na época do Getúlio, você imagina — camelô era vagabundo e, vire e mexe, preso por vadiagem. Minha vó dizia que ele tinha uma única jaqueta, que usava nas madrugadas frias do Rio quando ia vender mangas pros que saíam bêbados das noitadas na Lapa. Num dia particularmente frio, ele foi pego pela polícia e passou a noite na cadeia. Dividiu a cela com outro homem, com quem deu tempo de pegar alguma amizade. Você sabe que ele, meu bisavô, ao sair, deixou a única jaqueta que tinha com o cara? Minha vó sempre conta essa história. Meu bisavô era negro, filho de ex-escravo com uma índia, acho que ele estava acostumado com a perseguição e entendia de necessidade. Quando ouço sua história sem graça, San, essa imagem, das roupas, me vem à cabeça. Me faz lembrar do meu bisavô, que nunca conheci, aliás, e de quanto as roupas são importantes, quando temos elas. Por isso não me admira você ter ficado triste quando viu a cena. Eu fico também, quando visto uma jaqueta bem confortável e quentinha.”

Era quase meia noite e eu tinha que correr pra pegar o último metrô a tempo. Não lembro da Valete, mas sei que voltei sozinho nessa noite.

-Ei, Lore, você fica bonita assim, à luz de velas.

-Ah, brigada. Vou lembrar disso quando esquecer de pagar a conta de luz de novo. Tô quebrada, mas pelo menos fico bonita assim.

-E fica mesmo… Débora concordou.

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