cópia de o espelho

Paloma Palacio
Revista Transversal
3 min readApr 15, 2019
Sem título, de Francesca Woodman

A gente não se entende, eu e você. Eu te disse que tinha sonhado contigo e você me perguntou se era sonho ou pesadelo. Respondi sonho, porque não queria dizer pesadelo também; os dois, afinal e etcétera. Era falar demais. Tinha uma menina que era eu e uma menina que nunca existiu. Nunca teve corpo ou sonhou comigo, era ideia na minha cabeça e surgiu como se fosse você, me brotando no pensamento. Fiquei.

No sonho, as duas meninas já se conheciam. Viviam num manicômio feminino, construído sobre as ruínas de um cinema de rua em Botafogo. Você reconhece? A gente vestia uma bata branca esvoaçante, que lembravam dois lençóis pendurados no varal num dia de forte ventania. Eu, a menina que corria, corria atrás de você. Desde o início dos tempos foi assim. Te alcancei, e a menina que nunca tinha existido voltou contra ela um rosto furioso. Disse que não deveria se comportar daquela maneira, que não me respeitava mais se fosse assim. Não sei bem se te ouvia, mas sua boca abria e fechava como se falasse. Você me parecia assim. Linda, grotesca.

A menina, que não podia mais existir, esbravejava. Dizia que eu não podia me engraçar assim, não podia dar pra qualquer um daquela forma. Não queria que eu fosse uma piranha. Que, se fosse assim, não seria mais minha amiga. Fiquei irritada, mas não gritei. As duas meninas estavam no meio da ala principal, próximas à recepção, onde dois ou três enfermeiros entediados batiam teclas à esmo em minicomputadores de uma outra época. Dois médicos cruzavam o corredor e todos pareciam alheios à confusão que ela criava. Recém-saída do silêncio, a menina respondeu calmamente que a outra se enganava, não era possível. Era ela quem flertava com os enfermeiros, com os médicos. Com os inspetores, com os caras da faxina. Com praticamente todo mundo. A menina impossível, então, passou correndo por mim e foi ter com um dos encarregados da recepção. Fiquei imóvel por alguns instantes, mas fui logo me chegando da conversa.

Ao me aproximar, você se voltou de novo contra mim, o rosto em chamas, e encerrou imediatamente o assunto. A menina que não tinha corpo e não podia existir de jeito nenhum abordou outro recepcionista e disse que desejava voltar imediatamente à sua cela. O homem consentiu, mas, distraído pela sua rotina inútil, não fez menção de acompanhá-la. A amiga se prostrou ao seu lado e caminharam assim, juntas, lentamente em direção aos aposentos de louca. Foram trocando pequenas confidências e impressões sobre o tempo que passavam ali.

Chegamos à porta do seu quarto e você parecia radiante, como ficava apenas nos seus melhores dias. Pelo canto do olho, podia ver o guarda prostrado ao lado da entrada do seu quarto. Pressenti que ele já te esperava. Você me deu um beijo de despedida, segurando meu rosto delicadamente entre as duas mãos, como fazia minha mãe. Me disse ainda qualquer palavra ao pé do ouvido, que fingi entender pra não prolongar sua partida. A menina que era eu voltaria também, na sequência, ao seu isolamento. Enquanto isso, você, que nunca existiu, engatou nos passos que te levariam de volta àquele cômodo cinza e acolchoado. Ela nunca me deu as costas. Assim, de frente pra mim, vi a porta se fechando e o guarda, agora dentro da cela, baixando os olhos pra passar o último ferrolho na porta pesada que nos separava. Acordei pensando muito na minha mãe e lembrei que você tinha ainda a cópia encadernada de Um quarto só seu, da Virgínia Woolf.

Liguei pra te dizer que tinha sonhado com uma menina que nunca existiu. Você parecia entender outra coisa, me perguntou o que eu queria com aquilo. E eu só queria falar com você. E pedi a cópia emprestada do livro, porque pensava que, dessa forma, alguma parte de você entenderia. Nos desconectamos depressa. Você tinha um jantar marcado e eu precisava atravessar a rua sem que um carro me atropelasse em cheio.

Acredito hoje que consegui chegar, de alguma maneira, do outro lado.

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