Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readMar 4, 2019

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Carnaval

Não gosta de carnaval. Liga a televisão: bloco, desfile, gente pelada na rua. Puto. Fica puto com tudo aquilo. Cadê as notícias? O mundo para durante esses dias? Eu queria ir no bloco com meus amigos, pai. Não. Não vai em bloco nenhum. Naquela casa carnaval não existe. Mas pai, é aqui do lado de casa. Não vai. Por que não? Porque eu não quero. A esposa aparece com uma peruca rosa que ele arranca da cabeça dela. Ninguém vai pra nada. Raiva. Porque você não foi pro retiro esse ano? Não quis. Não gosta mais do retiro como gostava antes. Porque você está se afastando da igreja, pai? Te fazia bem. Nunca gostou da Igreja. Queriam fazer parecer que aquele monte de sermão preenchia um vazio que ele sabia continuar ali. O senhor não gosta de carnaval, mas eu gosto. Não vai. Eu não vou ver filme com você não. Foda-se. Vou ver a reprise dos desfiles de ontem. Ninguém respeitava seu ódio. Se tranca no quarto e liga a tv, procura por algum filme no catálogo online. Já vi, já vi, já vi, o nó na garganta aperta. Já vi, já vi. Do lado de fora da rua começa a batucada. Caralho. Levanta e fecha a janela, irritado. Tremores e suor frio. Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós. Música filha da puta. Não tem um filme que lhe agrade no catálogo. E que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz. Minha roupa tá aí dentro? Tá. Vê se tem um sutiã branco pra mim. Mas eu digo que vem. Tem sim. Era um sutiã feito aquele. Vem, vem reviver comigo amor. Mãos trêmulas. Porra, aquele sutiã tinha que ser branco? O centenário em poesia nesta pátria mãe querida. Respira fundo. O império decadente, muito rico e incoerente. Respira fundo. Tu não é mulher? Então aguenta. Em seu ouvido uma voz inconfundível. Era fidalguia e por isso que surgem. Ele era maior. Não tinha como gritar. Pegou ele pelo braço e todo mundo achou normal: beco escuro, barulho e cerveja. Surgem os tamborins vem emoção. Tu não é viado? Foi, sempre foi, mas nunca disse. Nem pra si mesmo. Escondia como tentava esconder aquela lembrança. A bateria vem, no pique da canção. Cheiro de mijo. Grita. Não adianta. Olha nos olhos dele e não esquece aquelas duas bolas negras orbitando numa poça branca: vou te comer. E a nobreza enfeita o luxo do salão. Deixa de ser chato e vem ver o desfile comigo. Eu vou te comer pra tu nunca mais esquecer. Tentou empurrar ele para longe, mas ele reagiu com dois socos: um no estômago outro no rosto. O jogou no chão e abriu suas pernas. Rasgou a cueca. Lhe enfiou os dedos. Respira fundo. Vem viver, vem viver o sonho que sonhei. Ele sente o sangue escorrer. Ainda sente. Passa os dedos, assustado. Sente que não tem controle. Fica calado e fecha os olhos. Respira fundo. Ao longe faz se ouvir.Pega pra mim, Rodrigo? Ele lhe rasga o sutiã, arranca a peruca, tira a bermuda. A mão treme e a boca fica seca. Esse vazio que pastor nenhum explica vibra no ritmo das batidas. Tem verde e branco por aí. Esse vazio que nada preenche. Tu nunca mais vai esquecer de mim, Viado. É carnaval. Rodrigo você tá bem? Não consigo, fala baixo pra si mesmo. Rodrigo? Maquiagem borrada, nu e com sangue entre as pernas ele caminha pela rua. Rodrigo? Brilhando na Sapucaí, e da guerra. Rodrigo?

Da guerra nunca mais esqueceremos do patrono, o Duque Imortal.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva