Copacabana a quarta e última parte — o que fica e o que passa

Paloma Palacio
Revista Transversal
5 min readMar 30, 2019

Andar por ruas desconhecidas. Não saber o caminho. Esquecer de onde veio, não ter para onde ir. Ainda assim, poder ir a qualquer lugar. Dobro as esquinas de Vila Isabel mas poderia estar em Minas ou no Paraná. As fachadas das casas, tão originais e delicadas, parecem iguais aos olhos de quem não está acostumado a ver. Eu não me acostumo. Elas permanecem, e eu passo em marcha constante. Me sinto confiante, entregue ao fato de estar perdida na medida certa. Logo encontro o shopping e, em seguida, a praça Saens Pena. Voltei ao ritmo da cidade.

Sonho em me perder de novo e acordo com vertigem. Preparo um café. Encosto meu corpo contra o parapeito da janela, enquanto tomo pequenos goles de coragem. No apartamento em frente, um gato tenta se esgueirar pela rede de proteção. Observo o intento do bichinho. Ele consegue fugir e aterrissa sobre o telhado vizinho. É quando percebo. O gato não tinha o rabo. Que nem o gato da Virginia Woolf.

Esta é a quarta e última parte da série sobre Copacabana.

o que fica

A Smarfit, a farmácia, o Americana Express e o Big Bi, furtivamente, numa esquina. O Pavão Azul e a delegacia de polícia em frente. A estátua de Carlos Drummond de Andrade. Narcisa Tamborindeguy. O Zona Sul. A Xuxa da Santa Clara. O Bip Bip. A estátua de Tom Jobim. As praias de Copacabana. As últimas boates e as primeiras prostitutas. A estátua de Ary Barroso. Os corredores do calçadão. Os moradores de rua. Os turistas. Os camelôs da Bolívia. Os pedintes da Venezuela. Os sádicos do Copacabana Alerta. A estátua de Dorival Caymmi, em eterno estado de aceno. A qualidade de vida, o desejo de morte, o cheiro de merda e o preço do aluguel.

os fantasmas

Não houve uma vez que não tenha confundido o Dorival Caymmi com um estranho conhecido. O rosto da estátua é sempre familiar, o que torna cada encontro com ela mais fantasmagórico que o último. Ele olha para você, que vem andando em direção a praia, com um sorriso e uma perna lançada à frente da outra, prestes a se movimentar. Ainda por cima, o aceno. O maldito aceno com a mão. Constrangedor. O corpo morto, literalmente aferrado de Dorival Caymmi me é mais humano do que qualquer pessoa que conheci em Copacabana. Sinto sinceramente um apreço especial por ele e diria que o considero hoje uma espécie de amigo. Um dos mais simpáticos, aliás.

os nômades

Um homem alto e corpulento caminha com uma mala grande pelas ruas paralelas à Avenida Nossa Senhora. Ele veste um blazer preto, uma calça preta e meias pretas. Até a mala que carrega é preta. Tem uma careca lustrosa e está perfeitamente barbeado. Ele está caminhando às 3 da manhã de uma quarta-feira. Já o conheço, sempre muda de lugar. Acho que não quer ser reconhecido ou está sempre em fuga, da polícia, dos sádicos, dos criminosos, da própria cara. Mas eu o vejo e ele sabe disso. Nunca nos falamos. Foi o segundo amigo que fiz por lá.

os sádicos

Sobe uma notificação no celular. Fui aceita no grupo Copacabana Alerta. Me dizem que o grupo é ótimo, que eles informam sempre que tem tiroteio ou suicídio na região. Embora fechado, é um grupo extenso com todo tipo de pessoa, mas em sua maioria homens adultos e senhoras. Clico em publicações e deslizo para baixo. Textos longos em caixa alta. Imagens censuradas de jovens mortos, detidos pela polícia. Todos negros. Numa delas, um menino que não parecia ter mais de 13 anos está acorrentado a um poste pelo pescoço. Ninguém sabe quem o prendeu ali, pelo que leio nos comentários. Esses também, em caixa alta. Falam confusamente em falta segurança absurdo pivete impunidade morra revolta aluguel altíssimo praias no passado outros tempos. Me pergunto se hoje eles teriam também um grupo no WhatsApp.

os turistas

Tem um filme de terror americano que se passa aqui no Brasil, Turistas o nome. Se trata de jovens ianques, brancos, loiros e sarados, que passam as férias no Rio e aproveitam pra meter o louco. Em resumo: são dopados, levados a uma cabana na floresta e começam a ter seus órgãos retirados pra serem vendidos no mercado negro. Alguém se salva no final, eu acho, ou não. Assisti ao filme há muitos anos, mas lembro de um plano em especial. Servia de prenúncio ao perigo que se avizinhava, papo de roteiro clássico. Na cena, os protagonistas estão curtindo um luau, quando uma das personagens femininas (vou chamá-la de Kelly) avistou um homem que os observava de longe. Kelly logo teve um mau pressentimento e alertou — não existia Facebook na época — um dos amigos americanos. A câmera faz então um longo movimento de zoom in, que enquadra ao centro um homem negro de trinta e poucos anos, cabelo rasta e bermuda com as cores panafricanas encostado numa coluna de madeira. O homem sorria sinistramente, é claro. Um sorriso é o que basta para que a audiência gringa se convença a ter medo de um latino. Bem vindos ao Brasil. Welcome to Copacabana beach. Have a gole from my caipirinha. Enjoy our meninas. Elas são mesmo de morrer.

o que passa

Siqueira Campos era ponto final do 433 e do 434, hoje não é mais. Criaram dez Troncais; as linhas foram reduzidas e perderam seus nomes e rostos. Não se faz mais ponto final em Copacabana agora, os ônibus partem e voltam de/pra Ipanema ou Leblon. Perto do antigo ponto final do 433, fica a entrada da estação do metrô. Em Copacabana são três: Cardeal Arcoverde, Siqueira Campos e Cantagalo. Cardeal me lembra a praia do Leme e picolé de coco. Siqueira, o vagão das mulheres e o cheiro de perfume pela manhã. Cantagalo, a mais vazia das três, foi onde marquei de buscar droga com um traficante certa vez. Ele morava a duas ruas dali e acabamos não fazendo negócio. Era quase Ipanema e aquilo na época era dizer que ficava num planeta distante. Embora fosse logo ali, chegar era impossível. Eu estava presa dentro de um apartamento dentro da minha cabeça.

--

--