Copacabana, a primeira parte — a começar pelo cu

Paloma Palacio
Revista Transversal
6 min readFeb 15, 2019
Copacabana mon amour (1970)

Conversava com a Barbra, quando — Em Copacabana é isso, todo mundo parece ter medo de todo mundo. E raiva, muita raiva dos outros. No momento em que disse isso, me pareceu que eu tinha chegado a algum lugar e tinha qualquer coisa nas mãos. Mas no instante seguinte, foi como se tivesse olhado de relance por um buraco. Tomei um susto. A verdade era que Copacabana me escapava completamente. Tive alguns sinais, o mal estar se instalou. A Barbra ficou triste com o que eu disse, mas ela está morando em Copacabana agora. Se ela sente que não conhece o bairro, eu conheço menos ainda. Fiquei lá por dois anos vivendo com um ex-namorado, entre outras circunstâncias que hoje me parecem a mais pura ficção. Não era eu, mas uma atriz — há quem diria, a Maisie Williams. Não eram “as pessoas”, mas uma multidão de figurantes. Os afazeres cotidianos não eram reais; os gestos, repetidos. Hoje sei que entrei de penetra numa cena pra qual não fui escalada — é a vida. Mas suspeito, tentando aqui equilibrar coisa qualquer que agora tenta escapar das minhas mãos, que não estou sozinha nessa. Copacabana rejeita, expele, expulsa. Copacabana é um cu. Nos próximos fragmentos, vou tentar arrancar alguns pentelhos desse orifício cabeludo e espetar na cara de vocês. Fazer cosquinha, pelo menos. Reuni ainda outros, que organizei em mais quatro textos que vou publicar na Transversal nas próximas semanas. Peço desde já que não me entendam mal. A começar pelo cu.

a legião

Cuidadoras, andadores, bengalas, cadeiras motorizadas. A terceira idade de Copacabana zarpa pelas ruas, equipada com tecnologia de ponta. É o futuro, sonhos de uma pensão militar com requinte escravocrata. Impressionante, 4 em cada 5 amigos reconhecem prontamente o idoso como marca registrada do bairro. Lucas pintou o quadro: uma legião de senhoras conservadoras mas cheias de energia. Disse ainda, amo e detesto. Elas falam alto, tem opinião sobre tudo, frequentam mil lugares. Sempre com cabelos pintados, suas pulseiras, suas calças de ginástica. Elas são muito, o tempo todo. Tenho asco, pena e admiração. Foi um desabafo. Nos divertimos muito com a descrição, ainda mais porque sentíamos que precisávamos falar delas. Ele estava inspirado, eu fiquei encucada. Anotei expressões e características esparsas que me remetem a essas criaturas fantásticas de Copacabana. Há as de cabelo colorido com certeza. São ótimas em puxar conversa de elevador e de longe, as mais gentis. Também as que usam maquiagem pesada e sorriem com facilidade extra (mas essas não, nunca olhe diretamente nos olhos delas). As ricas minimalistas e despojadas com shorts de linho branco e tênizinho. Estão sempre ao ar livre na companhia de uma amiga ou do marido — sozinhas, jamais. As corredoras do calçadão, falsas quarentonas que vivem de colan ou carregam um tapete de ioga — essas, já discordo do Lucas, não entrariam na minha lista. O único critério que qualifica um tipo como senhora de Copacabana é parecer velha, e essas correm na direção contrária do tempo. Têm o olho vidrado no timer do seu Apple Watch, e, o que é mais impressionante, costumam ganhar a corrida. Um brinde a elas. Meninas privilegiadas de idade avançada, as falsas senhorinhas me fazem sentir cada vez mais nova e pobre.

sobrou the bagaça premium of the laranja

Bom, acredito que onde mais aprendi sobre os idosos de Copacabana foi convivendo com eles no mercado. Passei a reconhecer o brilho no olhar de uma senhora prestes a fazer um barraco no caixa. Os funcionários, percebi, desistem logo do confronto. Eles sabem que nada podem contra uma idosa contrariada. Pelos corredores estreitos, há também o clássico empurrão que precede o esporro: sai da minha frente! ou, argh! É assim. No início, fazia questão de ensaiar uma caída dramática e segurar minhas pérolas em represália à tremenda falta de educação. Alerta de spoiler: a passivo agressividade não funciona com o morador de Copacabana. Não tem espaço pra sutilezas nesse bairro. Tive que me adaptar. Com o tempo, entendi que as senhoras do mercado realmente preferiam me assistir semimorta e convulsionante num canto do que viva e de pé no caminho delas. Mas não se engane — todo canto é caminho delas. Principalmente os corredores dos mercados de Copacabana, sempre apinhados de gente. Engraçado, lembro que não era incomum encontrar neles estantes inteiras vazias de comida. Às vezes me imaginava na Alemanha Oriental, juntando alguns marcos pra comprar nem que fosse a pelugem de um cervo morto. A seção de verduras, essa definitivamente ainda sofria as repercussões da queda do Muro. Pode ser um choque, mas mesmo sendo gorda, gosto de salada. É incrível. Ia ao mercado com três planos de jantar diferentes, pro caso do fornecedor de couve ou alface ou brócolis não ter chegado por causa do trânsito. O grande choque foi o dia em que não encontrei batatas. Mas esqueci disso rapidamente, quando na semana seguinte descobri que o mercado tinha sido interditado. Pela Vigilância Sanitária. De novo.

o som ao redor

Ainda assim, o que mais me marca quando visito Copacabana é outra coisa. Uma sensação, que posso começar a definir como um pequeno grande incômodo. Sutil, vulgar, mas constante, vigilante. Quanto mais tempo passo enclausurada no cotidiano do bairro, mais nítido o incômodo fica. Vou ao mercado e sinto os corredores se fechando sobre mim. As ruas, mesmo largas, se tornam extensões e extensões muradas de concreto. É difícil alcançar qualquer esquina, um parto se mexer, porque se está sempre junto. Centenas de milhares de pessoas sobre pessoas e você, com elas. Os apartamentos de Copacabana parecem engolir as próprias paredes só pra regurgitar você de volta pra rua. Resta apenas a opção de continuar andando. É obrigatório se acostumar a estar sempre em contato. Sush me disse que, quando pensa no tempo em que morou lá, lembra principalmente do barulho. Tinha um vizinho de 35 anos que brigava todo dia com a mãe e reclamava da vida por esporte. Eu conhecia os cachorros da vizinhança pelo latido. O Ugui vive ao lado de uma senhora que, todo dia de manhã, começa a conversar no máximo volume com alguém que nunca a responde. Olhando agora pela janela, vejo o corpo sem cabeça de uma mulher de meia idade que acaricia seu gato. Diria que ela assiste tevê ou observa atentamente a parede oposta, embora não veja seus olhos. Talvez ela esteja de ouvidos atentos. Esperando também, a hora de despressurizar.

réveillon now

Rapidinho, antes de fechar a conta. Meus amigos estão saturados de ouvir essa história, mas reconto ela mesmo assim. Acho que foi um presságio. No réveillon de 2018, a Paula e o Iago decidiram passar a virada num apartamento no nono andar de um prédio que ficava a duas quadras da praia de Copacabana. Estavam sozinhos e chapados, aguardando com intranquila calma a entrada do ano. Faltava uma hora pra meia noite quando engataram numa conversa estranhíssima. Algum dos dois perguntou:

-E se 2018 nunca chegar?

-Que?

-É, ainda dá tempo de acabar o mundo.

Paula ficou animada com a ideia. Resolveram descer e conferir como estava a situação lá embaixo. Viram uma procissão de corpos, marchando em pequenos bandos, todos de branco, numa linha reta que desembocava na praia. Notaram que os homens pareciam os mais transtornados. Gritavam a plenos pulmões, cantarolando músicas antigas e quebrando garrafas de Cereser pelo caminho. É como se anunciassem o fim dos tempos, foi o que o Iago comentou, mas a Paula não ouviu. Ela observava algumas crianças que choravam muito, assustadas com o comportamento estranho dos pais e tios. Mal sabiam elas que o processo de transformação, que só se completaria meses depois, já tinha começado. Ela jurou que viu ali mesmo garras peludas despontando de camisetas que, sob a luz fraca dos postes, pareciam refletir tons de verde e amarelo. Iago não confirma a versão dela, mas também não desconfirma.

-É, acho que não vira.

-Te falei. Quer apostar? Mas não dou um tostão.

-Feito.

Lembro que me mandaram esta mensagem: hashtag mental #apocalipse2018now. Disseram que, quando a contagem regressiva chegou ao fim, não podiam acreditar. Os bêbados tinham sobrevivido, eles também. Pareciam mortos-vivos, cambaleando rua acima. Exaustos, os dois dormiram logo em seguida. Paula me contou depois que, na verdade, ela teve algumas horas de insônia. Passou o tempo olhando pro alto, até que resolveu cantar Caetano pra lua. Acabou assim embalando o próprio sono. Ah sim, era noite de lua cheia em Copacabana.

e tem a praia

Isso me lembra. Tem também a praia, não sei se vocês conhecem. Dizem que é linda.

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