Copacabana, a segunda parte — as cinzas de quarta

Paloma Palacio
Revista Transversal
5 min readMar 6, 2019
Um pedaço da capa do livro que muito me lembra O Homem que matou o Facínora do John Ford, filme citado numa passagem de O amor

“Quando tinha a loja de antiguidades, abria da sexta à Quarta de Cinzas, para ver os brincantes de Copacabana, os adolescentes, as recém-desquitadas meio perdidas, os solteirões que já passaram da idade. Os casais formados de acaso iam se esconder na galeria, um ou outro bêbado se sentava nos banquinhos do corredor, um passante desavisado que precisava respirar um pouco. Uma colombina, um Capitão América, um bebê peludo, uma Frida Kahlo, uma Super Mario, uma enfermeira. Às vezes entravam na loja. A bagunça lá dentro, a sombra, os itens avulsos, alguns anedóticos, o aleijado atrás do balcão, tudo dava a impressão de outro Carnaval, mais fundo, mais quieto. Olhavam os álbuns de foto de desconhecidos eternos, os chapéus de gente provavelmente morta, os rádios que não funcionavam mais — olhavam tudo com cara séria, mesmo os trêbados e tetrêbados, mesmo os homens vestidos de sereia, com aquele passo desengonçado da fantasia que não deu certo. Saíam em silêncio. No máximo, um aceno de sorriso. Nunca compraram nada.”

***

Começo a escrever esse texto sob a influência de alguns finais, e não estou falando de Carnaval nem de Copacabana. Terminei O amor dos homens avulsos, do Victor Heringer. Livro novo, escritor jovem, pura coincidência. Ele decidiu se resolver da vida ano passado, antes de chegar aos trinta. Desde então sua obra foi reeditada pela Companhia e anda circulando por aí. Morava em Copacabana, na época. Adivinho nas páginas por onde acabei de andar. Sinto que o autor pode ter levado consigo certo segredo sobre o Rio. Camilo, narrador do romance, já teve uma loja de antiguidades em Copa. Era na galeria Cartago, quando vivia no Lido. Ao que parece foram vizinhos então, escritor e personagem… Foram vizinhos? Para falar do bairro, deixo Camilo com a palavra. Ele narra uma quarta-feira de cinzas qualquer, que um dia existiu. Como a de hoje, dia de ressaca. Feriado nacional da anti-literatura. Mas não precisa ficar tão sério com isso. Assim como na loja de antiguidades de Camilo, sinta-se livre para entrar e sair desse texto quando quiser. Pode levar os silêncios.

fim de festa 1/2

Bom, todo Carnaval pra mim é isso: êxtase absoluto seguido de tremenda depressão. Não tenho notícias melhores que essas. Fala-se de energias e espíritos em trânsito. Sei que no final de domingo, me vi perambulando sozinha pelas ruas de Copacabana mais uma vez. Tinha o cabelo rosa e um chiclete velho na boca. Acho que minha ressaca começou ali. O bairro, no entanto, parecia mais aceso. Os velhinhos tinham se escondido. Os bares de esquina voltavam à vida, lotando com os que ainda se recusavam em voltar pra casa sóbrios. Copacabana se alimenta de fim de festa? Enquanto a Lapa vive de envelhecer mal, a menina do calçadão rejuvenesce chupando as energias dos foliões sobreviventes. Eu segui andando, de alguma forma.

fim de festa 2/2

O dia amanheceu ainda Carnaval, mas segunda-feira. Pro Camilo, do balcão da loja, “dava para ver a Nossa Senhora de Copacabana lá fora.”

“Eu conseguia distinguir de longe os meus clientes. Eles se destacavam do frenesi da avenida, da força bruta de Copacabana, um bairro que, até hoje e até aos domingos, se movimenta com a violência de uma eterna sexta-feira à tardinha: acidentes automobilísticos, buzinas, brigas de rua, traições, especulação imobiliária, assovios, apitos, aumento de tarifas, tropeços no asfalto quente. Mas os clientes eram alheios a tudo isso, Copacabana não era com eles.”

Ou comigo, ali. Ou aquele bloco vazio. Que seguia. Na minha direção. Já era segunda-feira? Quando se aproximou, pude atestar: não tinha ninguém no bloco. Espremi os olhos pra conseguir ler os cartazes que os menos talentosos da banda ostentavam. Lembro de uma senhora fantasiada de “A liberdade tem limites”. Me engasguei no riso no justo instante em que a banda parou.

-Jesus!, alguém gritou,

ao que o surdo respondeu um surdo “tum-tum”. Até que os outros, em uníssono: “Jesus! Jesus! Jesus!”. O surdo calou dessa vez.

Ao lembrar disso, olho pra cima.

Me pego imaginando os prédios onde Camilo poderia ter morado. Dentro deles, nos pequenos apartamentos vazios onde Victor não mora mais. Lembro também de um personagem em um filme uma vez que disse que morar numa cobertura o deixava mais perto de Deus. Era um documentário. O diretor esqueceu de perguntar se isso era bom ou ruim.

Bem, Copacabana também não devia ser era com ele.

a solidão dos porteiros

Yuri me disse que o bairro o remetia a solidão e sei do que ele está falando. Perambulava bêbada pelo bairro, atravessando fileiras e fileiras de portarias. Chiques, caretas, pobres, estreitas, quadradas, largas, altas, baixas. Elas enquadravam uma mesma figura, a do porteiro que se sentava. Eram homens, uniformizados, de muitos rostos, todos a postos. Seu trabalho à noite parecia principalmente esperar. Passo por um dos empreendimentos mais duradouros de Copacabana, o Formiguinha 24h e desenho uma cena sobre o quadro. Bom, vou ter que explicar o que é o Formiguinha antes de tudo.

(o formiguinha)

(Vou tomar os parênteses do Victor emprestados pra isso. Formiguinha é uma loja de conveniência 24h que se reproduz nada ironicamente como praga em Copacabana. Gosto de lá. Até hoje ela existe em no mínimo três pontos do bairro, e isso é só o que lembro de cabeça. Atribuo o sucesso ao fato de ser um dos poucos comércios abertos de madrugada, em que se pode tanto comprar pomada quanto biscoito Globo. Ainda assim são lojas-inseto, estreitas, com uma iluminação amarelada forte que se destaca da noite. Estão mais pra Vagalume 24h, porque servem como luz no fim do túnel aos bêbados e lariquentos da região.)

(Nesse dia em questão, só tinha um vendedor acordado no lugar. Franzino e branquelo, não parecia ter menos de 18 nem mais que 20. Eis a cena: ele apertava carinhosamente a mão do porteiro do prédio ao lado através da grade que separava o edifício da loja. O porteiro era mais alto que ele, mais gordo e estava gargalhando quando passei por eles. Senti a dupla de olhares sobre mim e desviei o rosto. Não sem antes capturar carinho com minhas antenas de solitária. Soube por instinto que ali se travavam duas ou três batalhas diferentes contra a solidão e, o que é raro, ela parecia perder. Por isso sei do que o Yuri estava falando. Me pergunto se um dia eles se chamaram de Cosmim e Camilo, como no livro.)

fecha parênteses

Numa crônica pra Suplemento Pernambuco, Victor Heringer diz que escrever é ocupar a cidade. Tenho fé nessas palavras. Sigo andando por Copacabana. Faço questão de derrubar as cinzas pelo caminho. E essa dor de cabeça terrível. Terrível, que não passa.

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