Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readFeb 7, 2019

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Desafio das palavras
do Fernando Salles

Central

Acordar era um ato de coragem todos os dias. Água na cara e imaginação: será um grande dia, repetia a si mesmo. Vai passar rápido, repetia a si mesmo. Vai dar cliente de manhã, repetia a si mesmo. Tapa na cara, tudo mentira. Ele sabia. Copinho de café puro, beliscava um pedaço de pão velho e saia ainda no fim da madrugada. Ficavam a mãe e os irmãos ali no chão do barraco. Nas mãos graxa e baqueta.
Pegava o ônibus entrando na porta de trás, já conhecia o motorista. Quando era outro tentava o desenrolo, quando não pagava a passagem (que fazia falta). Na viagem precisava de paciência: trânsito e pessoas já nessa hora da manhã. No sacolejo das curvas sentia o enjoo do café misturando em seu estômago. Mas era o café ou nada. Respirava fundo, apoiava a cabeça nos ombros. Sentado na escada se encolhia para que os outros seguissem. Acostumou ficar ali. O ônibus manobra pela Presidente Vargas e entra na Central. Ele ajeita o cabelo e a barba rala de dezenove anos. Desce e caminha até a descida do metrô.

Em sua cabeça o relógio da central parado como tudo em sua vida. Foram cortes no orçamento, ouviu um homem que ele engraxava os sapatos dizendo. A mãe perdeu uma dessas ajudas do governo para o irmão menor com essa mesma explicação: foram cortes no orçamento. Ele, os dois irmãos e a mãe não cabiam no orçamento.

Abaixa com sua banqueta em mãos: o cavalheiro quer graxa? Ninguém para. É invisível. Graxa aí, Patrão? Se sente como os mendigos que perambulam por ali imaginando que um dia será igual a eles. Fuma um cigarro no chão. CIgarro barato que compra no varejo do bar sem que ninguém saiba. Quer graxa, cavalheiro? Olha para as pessoas e para o dia que nasce trazendo mais calor. Vai graxa aí, chefia? Se pergunta até quando vai continuar abaixando ali. Se pergunta até quando a mãe vai ficar sem emprego, o irmão vai ficar de camelô e o que o mais novo vai fazer quando se formar na escola. Vai trabalhar vagabundo! Vem o grito de um bacana de terno, celularzão nas mãos. Engole o orgulho, o cansaço, a raiva, a tristeza e o calor: é um caroço na garganta. Tomar no cu, sussurra baixo, quase que só pra ele mesmo. Vai graxa aí no sapato, senhora? Consegue um cliente aqui. Continue trabalhando assim mesmo que é melhor do que entrar pro crime. Consegue um cliente ali. Deus não joga dardos, se ele te deu esse trabalho e que ele sabe que você aguenta, filho. Almoça um salgado velho que lhe dão no bar. Em sua mente todas as perguntas se movem em um turbilhão de questionamentos sem respostas.
Até quando? Ele se pergunta.
Até quando?
Acende um cigarro e guarda a graxa na banqueta. Vai no depósito comprar um pouco de água para vender na parte da tarde com todas as moedas que tem no bolso. Sobre sua cabeça os ponteiros da Central, parados.

É uma questão de cortes no orçamento: o relógio e sua vida.

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Esse texto foi escrito para o Desafio das Palavras, do perfil da Revista Transversal no Instagram. Se você quiser entrar nesse desafio, veja o post a seguir:

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Fernando Salles
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Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva