Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readMar 25, 2019

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Dieta

Não era bonito. Nem alto. Nem inteligente. Largou o futebol, a natação, o judô e o xadrez. Não dava certo. Desde pequeno as pessoas lhe diziam que não dava certo. O que você vai ser quando crescer, Léo? Bombeiro. Mas logo você que é tão gordinho? É, ué. Muda de ideia, rapaz. Eu não. Quer um pacote de biscoito, Léo? Quero. A comida sempre foi a amiga que não o criticava. Eu vou ser bombeiro. As pessoas riam e passavam as mãos sobre sua cabeça. Bochechas grandes e rosadas. Ele não esquecia. Ele não entendia. Porque você não vira médico? Não quero ser médico. Quer um brigadeiro, Léo? Quero. Na panela: uma lata de leite condensado, manteiga, chocolate e consolo. Comia tudo. Rapaz mude de profissão. Eu vou ser bombeiro. Porque tu não faz uma dieta? Dieta? Dieta? Quer uma coxinha, filho? Quero. Estudou para as provas? Estudei. Estudava, mas as notas vermelhas se repetiam. Matemática, Português, Ciências. Você estudou mesmo, Léo? Educação física, Biologia. Até educação física, Léo? Não consigo correr. As respostas se enrolava em sua cabeça como as pernas ao seu corpo. Lento demais. Burro demais. Era o que diziam. Você precisa levar esse menino para um médico. Mãe, tem hambúrguer? Você tá de dieta, Léo. Dê a comida para o menino, dê. Dizia o pai que não queria ver o filho triste. Porque você come tanto, Léo? Eu gosto de comer. O que mais você gosta de fazer? Não sei. Você joga videogame? Jogo. Gosta de jogar? Gosto, mas sempre perco. O que você quer ser quando crescer? Eu quero ser bombeiro. O que você precisa fazer para ser bombeiro? Eu não sei…

Desde então começou a pensar.

Entendeu.

Mãe, tem pizza?

Pela casa, Léo é uma figura sombria que não sabe mais o quanto pesa _ desistiu quando chegou a cento e setenta aos quinze anos. Não sai mais para a rua desde que terminou a escola. Não tem amigos que o visite. A família sempre lhe aconselha a fazer dieta. Dieta. Dieta. Mãe, tem chocolate? Mas ele não segue. O que você tá pensando em fazer, Léo? Nada. Não pensa mais em nada além de comer o quanto pode ao longo do dia. Você não queria ser bombeiro? Queria. E aí? Não vou ser. Fim. Ponto. Pronto. Não vai ser. Já acostumou a dizer para si mesmo. Deixa pra lá. Não faz falta. Vive sem. Tem sorvete? Você tem uma compulsão por comida, Léo. Eu sei. O que você pretende fazer para mudar isso? Eu não consigo mudar. Diz alto. Eu não consigo mudar. Repete. Não vê outra saída senão falar para si mesmo e para os outros. Conseguir nunca esteve ao seu alcance. Na internet olha para Maria vitória: olhos castanhos e barriga pequena. Mãe, tem bolo? Não vai ficar com Maria, já sabe. Você conhece ela pessoalmente? Mora na minha rua. Já falou com ela? Não consigo. Porque você diz que não consegue? Porque eu nunca consegui. A mãe desistiu. Mãe, tem doce? O pai desistiu. O que você vai fazer com a sua vida, Léo? A pergunta fica pairando por um tempo enquanto Léo olha um pedaço de pudim bem na sua frente.

O que você vai fazer com a sua vida, Léo?

O que você vai fazer?

O que fazer?

Olha para o Facebook de Maria Vitória, para as imagens dos bombeiros na internet, para a comida na geladeira, para as roupas largas do armário, para o silêncio da mãe e do pai. Olha no espelho e desconhece os olhos fundos e escuros perdidos no rosto redondo e gorduroso. Olhos tão profundos e perdidos. Eu não consigo. Repete alto, iniciando um rito. No revólver, seus dedos envolvem o gatilho. Eu não consigo, diz chorando. Olhos fechados. No revólver, muitos dedos envolvem o gatilho. Eu não consigo.

Porque você não faz uma dieta, Léo?

A bala explode no cano: cada grão de pólvora tem o nome de um culpado.

Eu consigo.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva