Fragmento de Que cos’è la poesia, de Jacques Derrida — leitura

Ana Luiza Rigueto
Revista Transversal
3 min readApr 3, 2019

Você ouve a catástrofe vir. Desde então, impresso sobre o próprio traço, vindo do coração, o desejo do mortal desperta em você o movimento (contraditório, está me acompanhando?, dupla restrição, imposição aporética) de proteger do esquecimento esta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege- em uma palavra, o porte, a retração do ouriço, como na estrada um animal enrolado em bola. Gostaríamos de pegá-Io nas mãos, aprendê-lo e compreendê-lo, guardá-Io para nós,junto de nós.

Você ama — guardar isso em sua forma singular, digamos na insubstituível literalidade do vocábulo, se falássemos da poesia e não somente do poético em geral. Mas nosso poema não se acomoda em meio aos nomes, nem mesmo em meio às palavras. Antes de tudo, está jogado pelas estradas e nos campos, coisa para além das línguas, ainda que aconteça de lembrar-se nelas no momento em que se junta, enrolado em bola junto de si,mais ameaçado do que nunca em seu retiro: ao acreditar defender-se é que se perde.

Literalmente. você gostaria de decorar uma forma absolutamente única, um acontecimento cuja intangível singularidade já não separasse a idealidade, o sentido ideal, como se diz, do corpo da letra. Nesse desejo da inseparação absoluta, o não-absoluto absoluto, você respira a origem do poético. Daí a resistência infinita à transferência da letra que o animal, em seu nome, todavia solicita. É a desgraça do ouriço. O que quer a desgraça, o próprio estresse?stricto sensu alertar. Daí a profecia: traduza-me, vela-me, guarda-me um pouco mais, salve-se, deixemos a estrada.

Assim surge em você o sonho de decorar. De deixar-se atravessar o coração pelo ditado. De uma só vez e isso é o impossível, isso é a experiência poemática. Você ainda não conhecia o coração e assim o aprende. Por essa experiência e por essa expressão. Chamo poema aquilo que ensina o coração, que inventa o coração, enfim aquilo que a palavra coração parece querer dizer e que na minha língua me parece difícil distinguir da palavra coração. Coração,no poema “aprender de cor” (a ser aprendido de cor),já não denomina apenas a pura interioridade, a espontaneidade independente, a liberdade de atingir-se ativamente reproduzindo o rastro amado. A memória do “de cor” entrega-se como uma oração, é menos arriscado, a uma certa exterioridade do autômato, às leis da mnemotécnica, a essa liturgia que imita superficialmente a mecânica, ao automóvel que surpreende sua paixão e avança sobre você como se viesse do exterior: auswendig, “de cor” em alemão.

Logo: o coração lhe bate, nascimento do ritmo, para além das oposições do interior e do exterior, da representação consciente e do arquivo abandonado. Um coração se abate, nos atalhos ou estradas, livre da sua presença, humilde, próximo da terra, bem baixo. Reitera murmurando: nunca repete …Em um só algarismo, o poema (o aprender de cor) sela juntos o sentido e a letra como um ritmo espaçando o tempo.

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CRÉDITOS

Tradução: Tatiana Rios e Marcos Siscar
Texto Que cos’è la poesia, de Jacques Derrida, publicado em Points de Suspension. Paris: Galilée, 1992, pp. 303–308.

No vídeo:
Voz: Ana Luiza Rigueto
Obra: Pirra, escultura de Clara Machado e Alessandro Tessar]

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