Sem beijos

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readMay 21, 2018

A persiana do meu quarto tem trinta e uma tiras. Entre as duas primeiras, vejo parede. Entre a segunda e a terceira, um pedacinho da janela. Entre a terceira e a quarta, uma rosa dentro de uma bota velha. Entre a quarta e a quinta, uma luz se acendeu. Entre a quinta e a sexta, uma luz se apagou. Entre a sexta e a sétima, um pombo pousou. Paro a contagem. Tenho medo. Volto-me para o interior. A luz acesa, escrevo no computador. Digito letra após letra, formo palavras e frases.

parágrafo.

No tapete há flores que não sei contar. Mas deito. Sinto um cheiro que não é de flor. Espirro e explodo. Gargalho porque cometi muitas loucuras, saí escrevendo, falei algumas verdades… Lembrei do tempo em que lia Nietzsche na ida do ônibus. Ecce omnibus. Eu estava apaixonada nessa época. Sei porque quando penso só vejo o sol, minha vista ofuscada, uma roupa branca. Era impossível. Como aquele relógio da Central do Brasil.

O tempo parou.

Permaneço naquela janela, prevendo poemas, fazendo cartas de amor. Três anos é uma distância infinita. E os pensamentos giram em redemoinho. Que teria sido de mim se tivesse respeitado a ordem das coisas? Se tivesse olhado pra você e você tivesse visto? O que será de mim no final da Rio Branco, quando estou, na verdade, sentada de pernas cruzadas de frente para estas palavras:

eu — não — sei.

Ao mesmo tempo, tudo está aqui. O início e o fim. O chá de boldo da vizinha, o grito do esquizofrênico, minha mãe me chamando pra comer o risoto, a angústia de ter que escrever dez páginas por dia…

Não saber e mesmo assim pegar o 455 e partir.

Todo dia é um itinerário. Sempre morre alguém em outro país. E às vezes morre alguém na estação de metrô. Minhas células morrem debaixo dos trilhos. Olho pra vocês. Vocês atravessam a avenida correndo. Vocês fazem sinal e o ônibus passa. Vocês voltam às cinco e pegam o trem. E se vocês tivessem visto? E se os homens que desejo tivessem visto?

No asfalto quente eu borbulho. Cada estouro é uma estrela morrendo. E não tem jeito: os carros passam sobre mim.

Fico esmagada entre a roda e o desejo.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.