Jogava dardos sem me importar

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readFeb 5, 2019
Wtf 2 With Words, Leah Saulnier

Desafio das palavras

Sempre fui distante de tudo.

Quando puxam conversa na rua, sou simpático, ah, é mesmo? que interessante, um cavalheiro. Tudo da boca pra fora, não me importo com nada. Cheguei um dia a pensar que era sociopata. O psiquiatra me disse que sociopatas não vão ao médico pra comprovarem que o são. Fiquei frustrado, tinha achado que poderia me encaixar num diagnóstico.

Numa viagem pra Minas, o ônibus parou e eu tive que acordar. Outro ônibus tinha virado mais à frente, pessoas mortas, algumas crianças. Coloquei o fone de ouvido, School, do Supertramp. Meu pai que me apresentou. Botava um disco na vitrola, a gente ficava ouvindo na sala, distraídos, ele com um jornal aberto, eu quase não via seu rosto naqueles domingos, eu quase não falava, eu ficava de pernas pro ar olhando o teto, tentando enxergar as formigas.

Minha mãe sempre perdia a paciência. Eu queria um microscópio pra poder ver melhor as formigas, as baratas, os barbeiros. Foi na escola que vi pela primeira vez um barbeiro ampliado. A coisa mais bonita. Quis roubá-lo pra mim, no final da aula tive coragem, a professora pegou e me colocou de castigo. Fiquei sozinho numa sala cheia de carteiras viradas, poeira, um cheiro de cola, sei lá. Estiquei as pernas, olhei pro teto e tentei encontrar barbeiros.

Corte. No meu aniversário de onze anos, minha mãe fez um corte na mão, sem querer, claro, tava fazendo algum doce pra festinha. Sangrou bastante. Meu irmão mais novo chorava, nunca entendi por quê, eu não estava nem aí. Era só colocar a mão debaixo de água corrente e pronto. Naquela época, eu não me importava de não me importar. Jogava dardos na porta do quarto, errava o alvo, errei tantas vezes, ficaram tantas marcas, não importa. Criança é assim mesmo, engole caroço, arranca cabeças, desenha paredes, recorta parentes do álbum de família.

Não me importava.

Agora sinto enjoo. Não sei como não senti nada ao saber da morte do meu pai.

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Esse texto foi escrito para o Desafio das Palavras, do perfil da Revista Transversal no Instagram. Se você quiser entrar nesse desafio, veja o post a seguir:

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.