Ítalo Silva
Revista Transversal
4 min readSep 29, 2018

--

Luma, cheiro de inverno

É estranho, ainda hoje, de dia, eu estava em outra casa. Com outro dono. Acho que é outono. Adoro o cheiro que tem. Meu dono tinha cheiro de outono. Parece que foi pra bem longe daqui, e não, não poderia me levar. Vou sentir falta dele, sempre me tratou tão bem, não lembro muito bem onde nasci, mas sei que desde meus primeiros ganidos ele estava lá, me olhando, de olhos brilhando, algo no meu corpo parecia chamar sua atenção. Chamava a atenção de todos, na verdade. Adoro o jeito que as crianças vêm me alisar e cutucar as centenas de manchinhas pretas que me cobrem. No rosto não haviam tantas assim, percebi me olhando em uma poça de água da chuva uma vez.

E agora me levam para outro canto. O abraço triste do antigo dono me fez perceber, logo depois, que não o veria mais. E tudo bem, aonde quer que eu esteja indo, haverá um lugar para amar.

Ah, cheguei. Opa, crianças! Três, todas com o mesmo deslumbre no olhar. Pera, deixa eu ver o que mais tem aqui. Pão, amo pão! Eita, sem querer comi todos que tinham, as pessoas daqui parecem ter ficado com raiva. Me tiraram de dentro do lugar. Uma das crianças veio junto, não parecia estar com raiva. Eita, o menino subiu em cima de mim, deve achar que sou um cavalo, não sou, não... Mas gostei dele. Tinha um cheiro diferente, cheiro de... inverno... Essa casa tem um muro, de onde dá para ver tudo que existe e além; todas as caixas de metal andando, talvez eu veja a caixa do meu dono, saudade dele. Opa, o garoto franzino apareceu de novo, pensei que ia subir em cima de mim outra vez... mas não subiu, só parou ao meu lado, será que ele está esperando o antigo dono também? Não, não acho, ele não está em busca das caixas de metal, o olhar é mais distante que isso. O cheiro é mais tristeza que outra coisa, se eu escolhê-lo para amar será que ele muda essa cara? Acho que sim. Pronto, enfiei a cabeça debaixo do braço. Quero esse menino para amar.

Depois daí a vida virou sonho, nem lembro mais da antiga. Consegui mudar o garoto, e olha só, ele me mudou também. Diversas vezes subimos no muro, eu não subia mais para procurar a outra pessoa, que nem lembro direito, subia para encontrar o que o garoto procurava, sempre olhando, distante, esse olhar ora nervoso ora estático, em busca de algo. Acredito que algumas vezes ele conseguia encontrar, pois não demorava tanto e me entregava um sorriso abatido. E logo depois deitávamos no chão e dormíamos. Era sempre assim, eu me esticava e o menino deitava na minha barriga, servia de colchão. Aposto que, se ele fosse maior, deixaria eu deitar em sua barriga quando precisasse.

Ah, quase morri, duas vezes, talvez mais, não lembro. De certa forma meu apreço pelo moleque aumentava. Ele não deixava que eu morresse, aparecia aquele olhar marejado e desesperado quando acontecia. Ali, eu percebia que precisava dele, e ele de mim. Era mais que um dono, era outra coisa. E não sei explicar o quê. Mas tudo bem, tem tanta coisa que não sei explicar. De todo jeito, ele se tornou parte de mim, e eu parte dele. Vivemos muitas coisas juntos.

Acontece que o dia chegou. É hoje, sinto que é. Muito tempo atrás, mordi um rato, ele não morreu de imediato. Um cheiro envolveu o bichinho arisco, um cheiro diferente, além do sangue, além da podridão. É como se, segundos antes da morte, houvesse um cheiro que avisasse a sua vinda. Outra estranheza que não sei explicar. E hoje esse cheiro me envolveu também. Eu acho que poderia brincar mais, mas talvez esteja na hora. Não tenho me sentido bem nesses últimos dias. Meu corpo não esquenta direito, meus movimentos estão ruins.

O menino já está grande, alguma coisa nele piorou, não fala comigo direito. O entendo. A gente quando cresce vai perdendo a graça, eu mesma perdi, essa situação do rato, por exemplo, tem mais de quarenta anos. Há séculos não sei o que é pegar algum bicho pra brincar. E o mesmo deve ter acontecido com ele. Talvez seja a casa, não sei, essa não tem mais muro, não podemos mais procurar aquilo que nem sei se dá pra encontrar. Ele veio me ver hoje de manhã. Tentei dizer sobre o cheiro, que não estava bem, que queria viver, e que estava indo embora, não podia evitar. Me olhou com os olhos marejados que um dia conheci, de alguma forma eles já sabiam, estavam mais distantes, opacos, porém tudo ainda dançava naqueles olhos, em busca de algo. Aquilo me esquentou, mesmo depois que ele foi embora.

Tudo bem ir agora, recebi tanto carinho, fui tão amada, não tenho o que reclamar. Daria mais amor e carinho se permanecesse. Pelo menos eu acho. É uma dúvida que deve chegar nessas horas. Se eu soubesse que viveria tão pouco teria amado mais? Não sei. Acredito que amei como se fosse viver pouco. Não me arrependo. Só espero que o menino não me esqueça, porque não vou esquecê-lo, aonde quer que eu esteja indo.

--

--