Meninas que escrevem

Liana Monteiro
Revista Transversal
3 min readMar 8, 2019

Comecei a escrever a sério ainda menina, ali pelos quatorze, quinze. Mais novinha fiz uma professora chorar com uma redação, e lembro de outros textos valendo nota que receberam muitos elogios. No ensino médio, outra professora escreveu assim: minha escritorinha. Fiquei pensando na palavra, saboreando o gosto, o carinho, sentindo uma certa dormência na língua quando encostava em algum tom mais sério, de responsabilidade, de decisão, de destino. Alguém já me chamava de escritora, escritorinha na verdade, porque alguns passos importantes ainda estavam por ser dados, e era me olhar no espelho, pensar na palavra, me procurar, reconhecer, ser.

Nesse caminho então, tornar-me, realizar-me escritora, escrevi muito, participei de concursos literários, às vezes tendo textos selecionados em coletâneas obscuras, e há alguns anos, recebi menção honrosa num concurso de poesia, minha mãe foi, toda orgulhosa; eu, como sempre, pelo caminho ia diminuindo a importância daquilo, tentando achar nada demais, escrever poesia era um talento inútil que não mudava nada no mundo. Mas a verdade é que fiquei muito feliz. Naquela noite, depois de subir uma ladeira cansativa, de noite, cada um dos poemas selecionados foi lido por uma atriz ou ator, e eu tive uma das melhores sensações da vida ao ouvir meu poema, chamado O primeiro poema, na boca de outra pessoa, outra mulher. Quem ganhou o concurso, com um poema lindíssimo aliás, sobre a Espanha, foi uma mulher.

Saiu em vários jornais de todo o país a notícia sobre Maria Eduarda, a vencedora do prêmio Jorge Amado, uma menina fã de rap e Mano Brown. Nas colocações mais altas, também meninas, cada uma com suas referências, estilos e motivos para escrever. Pensei muito nessa história, nessa menina, nas meninas que escrevem. Na escola, eu lembro, quem escrevia melhor sempre éramos nós, um pouco mais quietas do que os meninos talvez, mais perspicazes e atentas.

Pra onde nós vamos, depois? Por que desaparecemos? Deve ter a ver com a vida, acontecimentos que nos fazem ir por outros caminhos, a morte, o nascimento, desejos, contas, trabalhos, contratos, o não. E a descrença, porque ser escritora, parece, é algo muito distante, é pra quem tem histórias extraordinárias pra contar, uma vida de sonhos, de filme, de autobiografia. Deve ter a ver também com a falta de incentivo, que se agrava quando somos mulheres, o espaço no mercado editorial é disputadíssimo, e, infelizmente, ainda somos minoria.

No entanto, há de se reconhecer que as coisas estão mudando, existe um movimento forte de valorização das mulheres escritoras e de suas obras. Vou junto, e a meu lado Paloma e Ana — que haja espaço para nós, meninas que escrevem poemas no caderno de aulas, pensam num texto na hora do recreio, fazem da redação um momento de realização profunda e sonham. Agora, se não houver espaço, a gente inventa, torce a linguagem, o mundo, vai ficar do avesso, eu vou escrever, você, Paloma, vai escrever, você, Ana, vai escrever, você, Conceição, vai escrever, você, Maria, vai escrever, e vai ser uma balbúrdia.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.