Fernando Salles
Revista Transversal
2 min readJan 18, 2019

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Mentiras

Constatei nos últimos dias que meus personagens mentem para mim. Todos eles. Imagino suas cenas e as descrevo mentalmente: uma, duas, três… Várias vezes. Decupo suas ações e suas intenções, idas e vindas, movimentos e gestos em seus corpos imaginários… Perco o controle: eles me enganam. Fazem outras coisas. Quebram objetos, mudam a luz, mexem no foco, sapateiam desengonçados, esfaqueiam uns aos outros. Sangue no chão que sou obrigado a limpar. Mentiras escorrem para todos os lados… Sorriem para mim: olhares sorrateiros que me acompanham. Eu não os conheço.

Eu volto para os números, os gráficos e toda a ordem que eu imagino moldar a narrativa: a lógica é uma chave de segurança que eu tento esconder entre os dedos. Bobagem. Eles riem. Ouço eles rindo em todos os lugares. Deleto os arquivos e os guardo em algum papel rabiscado que juro retornar depois. (Mentira).

Eles zombam de mim e rasgam meus olhos. Eu estou neles, eu sei.

Eu minto.

Mas não apenas.

Tu mentes.

Ela/Ele mente.

Nós mentimos.

Vós mentis.

Elas/Eles mentem.

Não consigo mais viver sem pensar nisso. (Risadas)

Apertamos as mãos, tomamos cervejas, contamos piadas, fazemos sexo, jogamos cartas, questionamos a política, criamos projetos, juramos amor. (Mentira). É tudo mentira. Não nos conhecemos. Não afundamos na carne que nos sustenta em nossos segredos mais profundos: nossas relações estão na derme dos olhos, na gordura opaca das frases instantâneas. Somos cínicos descarados que se vestem com a luz da lógica enquanto nossos íntimos dançam na podridão escura dos nossos eus. (Risadas).

Sentados envoltos em uma conversa mole, você sorri gentilmente para mim e eu olho para você: é como entrar em uma casa em que conheço todos os cômodos, os móveis, as fotografias, a posição dos talheres na gaveta de jantar… Mas há um silêncio… Esse silêncio mortal… Há uma fera aí dentro que pode me devorar e não sabemos quando vai acontecer… É apenas questão de tempo. A qualquer momento uma facada, uma paulada, tiros pelas costas, enforcamento com cadarços ou um empurrão nas escadas. Eu olho para você, (RISADAS), e sei que a camada dos seus olhos é mais fina do que você quer demonstrar. Sei que suas mentiras estão no quarto de hóspedes ou no forno da cozinha ou no armário do banheiro ou na gaveta de CDs. Suas tatuagens são pistas secretas. (RISADAS). Sei que estão aí. Nos cantos escuros da banheira, na estante de livros ou escondido no quadro do seu diploma. (RISADAS). Estão em todos nós. É irreversível. É insuportável. É nossa humanidade.

Para cada rosto que olho um conjunto de mentiras. Vidas duplas. Pecados sem confissões. Condutas criminosas. Doenças terminais. Vícios proibidos. Traições. Quem é você?

O que é você?

(RISADAS)

Meus olhos ardem. Eu pisco. Uma. Duas. Três. Quatro. RISADAS. CINCO. SEISSETEOITONOVE…

Silêncio.

Não adianta mais: está entre mim e você.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva