Mulher de Negócios
Oito horas. Acorda e bate o ponto. Bate as teclas, um, dois, três. Escreve um email, revisa, envia. Abre uma planilha colorida, lacuna vazia. Google e a resposta. Preenche a lacuna, envia outro email. Telefone. Um cliente reclama. Voz tranquila, fala pausado, respira fundo. Falam grosso do outro lado. Respira mais fundo, traga o ar, a poeira, o mosquito da dengue. Tosse. Desliga. Chega um email. Cobrança, abre uma planilha em preto e branco. Tititi, tatata, resolve aqui e acolá. Pronto. Bate a fome. Abre a geladeira, pega queijo e presunto. Celular. Esqueceu o gato no carro de novo. Fala baixinho, falam grosso do outro lado. Desliga. Deixa o sanduíche queimar. Come o sanduíche queimado. Engole e bebe uma água pra melhorar. Senta a bunda na cadeira, olha a janela, olha a tela, olha a parede, olha o teto. O documento abriu. Continua na página dois. Dá um branco. Xis e fecha. Dá vontade de mijar. Celular. A amiga separou. Levanta e vai ao banheiro. Já não aguentava mais tanta preguiça, ele não levantava a bunda nem pra pegar um copo d’água. Foda-se. Escuta, escuta, cochila na privada. Ei, cê tá aí? Dá a descarga e volta. Abre o documento, segunda vez. Respira fundo. Tatatatatatatatatatatatatata. O texto está péssimo, mas vai assim mesmo. Bate a culpa. Não fez o trabalho direito. Liga pra farmácia, pede um remédio pra dor de cabeça, a outra caixa acabou ontem à noite. Deita no sofá. Liga o som. Aquela música horrível que tocava nas festas da escola. Escuta mesmo assim. Sensação estranha. A música perscruta a sala. Parede desbotada, laminado descolado, quadro torto, planta murcha, luz acesa. Remela no olho, poeira na cara, blusa furada, boca rasgada, cabelo sujo. A música entra. Sente um estrondo quando o refrão toca no fígado. A bile carrega trinta e três anos. Os anticorpos impedem um resfriado, o sangue coagula um roxo do tamanho do mundo. A menstruação desce. Campainha. Toma o remédio pra dor de cabeça. A música para. Bate um vazio. Põe o absorvente. Abre a geladeira, pega uma maçã. Telefone. Outro cliente. Isso e aquilo, amanhã está tudo entregue. Desliga. Pega uma pilha de papel. Cálculo e cálculo. Está tudo certo. Chega um email, fatura digital. Faz as contas, tem dinheiro. Bate as doze. Os sinos da igreja, o corpo vibra, o Brasil faz o gol. É Copa do Mundo, tinha esquecido. Olha a janela, rua vazia. Não vai dar pra ir ao banco. Uma nuvem passa. A chuva vai pra Copacabana de metrô. Lembra o Carnaval. Seguiu um bloco já bêbada, sozinha, com uma leve vontade de vomitar. Estava feliz. Borrões dourados, batuques descompassados, uma voz ecoava. Era a mãe. Menina, vem almoçar. Sentava e comia arroz com feijão, carne assada, batatas coradas, bebia suco de caju. Lembra o maior cajueiro do mundo. Quilômetros de galhos embolados, sombras pesadas, partes de luz. Cada buraco é um portal. Passa a mão e dá na beira do mundo. Tateia do outro lado, uma vela, uma farpa, um pau. Tira a mão de susto e volta pro suco. Bebe as enzimas, as ligações químicas, o alvorecer em Natal. E volta… A maçã no tapete puído e todo o resto em seu lugar. Pensa em pegar o metrô e olhar o mar. Bate o medo. Tem que entregar os documentos. Tatatatatatatatatatata. Bate a fome. Abre a portinha, põe a lasanha e fecha. Gira, gira, gira. A luzinha do micro-ondas é um mistério. Deve ter sido inventada pra criança ver. A lasanha derrete como se derrete em um carrossel. Até que se torna o cavalo. Pipipi. Pega a lasanha, deixa na mesa, faz um suco de maçã. Bebe e come. Uma aranha desce na teia e olha. Garfo na boca, saliva no garfo, água na boca. Pensa em comer um mosquito bem grande e sobe. Está satisfeita. Deita na cama, tira um cochilo. A mãe tira os sapatos, beija a bochecha, cobre com um lençol azul. Celular. Tem que ir buscar o gato. Ele já está cansado, não gosta de gato, tem que ir trabalhar. Tem que ir, tem que ir. A mãe sorri. Tem que ir. Desliga. Ajeita o travesseiro e dorme, até anoitecer.