Narizinho, narega

Liana Monteiro
Revista Transversal
4 min readJan 28, 2019
Rosana Paulino. Impressão sobre tecido, ponta seca e costura. 58,0 x 89,5 cm — 2016.

Ela é linda, nariz arrebitado, a Narizinho. Sítio do Pica-Pau Amarelo na televisão, um prato de comida sobre as coxas, ela nem sentia o calor. Vidrada no narizinho. É isso que é ser bonita, pensou. A mãe tinha deixado a comida pronta, era só esquentar no fogão. Colocou o arroz, o feijão, a carne moída, misturou bem, gostava de tudo bem misturadinho. Parou. Narega. Olhou a cor da carne. Narega. Correu pro banheiro, abriu a portinha do espelho para se ver mais de perto. Era uma narega mesmo, narigão, nariz de batata, coisa horrível. Lembrou de uma tia-avó que morava em Minas, coloca um pregador no nariz dessa menina, vai por mim, ela dissera para a mãe. Não vou fazer isso com a minha filha, endoidou? Um dia ela vai ter dinheiro, vai poder fazer uma plástica. A mãe era branca, o pai, preto.

Quando era bem pequena, não atinava nessas coisas, só queria saber de brincadeira, pular, inventar história, pentear as bonequinhas, e era tão gostoso, o pente deslizava fácil naqueles cabelos dourados. Ela que sofria quando a mãe penteava o cabelo, chorava até, doía tanto, quando você tiver maiorzinha vamos alisar isso aí. Contava os dias para fazer oito anos, a mãe prometera que a levaria para um salão com aquela idade. Imagina que beleza, sair na rua, balançar a cabeça, sentir o vento, a cabeleira mexendo pra lá e pra cá, tão macia, tão brilhosa, as pessoas olhavam, que menina linda, que cabelo maravilhoso!

Não ficou tão bonito quanto ela imaginara. Chacoalhava a cabeça e o cabelo não saía do lugar, tava duro ainda, mas espichado. Brilho também faltava. Queria o cabelo igual ao da Beyoncé, reclamou com a mãe. Cabelo duro é assim mesmo, minha filha. Demora pra ficar bom, tem que fazer várias vezes, passar vários produtos. Um dia você vai ficar linda que nem a Bionce, pode ter certeza.

Ainda não havia chegado o dia. Continuava usando formol, fazendo chapinha, ah, aquele calor todo na raiz, tinha que sofrer tanto assim? Na escola, usava o cabelo preso num coque, pra ninguém ver o processo de embelezamento das madeixas. Às vezes leva anos, filha, você é muito novinha ainda, tenha paciência. Ela fazia uma careta, não sei, não, mãe, mas depois aceitava. Tinha esperança, um dia vou ser bonita, que nem modelo. Observava aquelas mulheres altas e magras, a pele tão pálida, lindas, o nariz fino, com cara de paisagem. Tinha pedido à madrinha de presente de aniversário uma assinatura de TV a cabo, só pra ver aquele canal, São Paulo Fashion Week, tanto glamour, todos olhavam admirados as beldades, o nariz tão fininho, como era possível? Só pode ser plástica, pensava.

Um dia seria a vez dela, apertava o narigão em frente ao espelho, testando, assim ficaria bom, puxava mais um pouco, seu sonho era ter um nariz arrebitadinho assim. A mãe batia na porta, que que você tá fazendo nesse banheiro, menina? Vem jantar! Nem sentia fome quando se olhava no espelho. Era só a vontade de crescer, crescer, ficar bem alta, os cabelos bem lisos, o nariz bem estreitinho, adulta, ela sorri, o nariz não se espalha pela cara, e todos babam.

Narega. Nunca tinha ouvido aquela palavra. Narigão, nariz de batata, nariz feio, nariz de negro, já tinha escutado. Narega, não. Teve que esquentar de novo a comida, se a mãe soubesse que não tinha comido, iria levar uma bronca, ficar de castigo, uns tabefes talvez. Pegou o prato, sentou em frente à televisão, não tinha ninguém vigiando mesmo. Marmelada de banana. Narega. Bananada de goiaba. Narega. Goiabada de marmelo. Narega. Não saía da sua cabeça, Felipe, o menino mais bonito da turma. Nunca contaria pra ninguém que gostava dele. Ou tinha gostado. Narega. Ele riu na sua cara. Se fosse outro, ela teria dado um soco e pronto. Mas tinha doído mais do que ela podia suportar. Virou-se, andou lentamente em direção ao banheiro, não deixaria que alguém percebesse a tristeza. Trancou-se em uma das cabines, cheiro de xixi, papel higiênico grudado no chão, chorou, chorou, não sabia o que sentir, tristeza, pena, raiva, de Felipe, dela mesma. Bateu a cabeça na porta, várias vezes, queria ficar desacordada, cortar a testa, deixar uma poça de sangue, se esvair, sumir, sumir.

Voltou à sala de aula, História, como se nada tivesse acontecido. Narega. O nariz da Narizinho era narizinho, uma fada brasileira, reino das águas claras. O dela era narega. É isso que é ser bonita, pensou. Nunca tocou no assunto com ninguém.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.