O corpo da notícia

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readAug 14, 2018

Por morar na Tijuca, o algoritmo do destino trouxe essa notícia para mim: “Idosa morre atropelada por ônibus na Tijuca e corpo leva quase 8 horas para ser retirado”. Não abri o link de imediato; guardei-o para depois. Para nunca, quem sabe. “Lerei em outro momento, agora estou cansada”. Ficou na lista de endereços virtuais que depois não encontro, pelo descaso de não procurar. Para que o esforço de ler uma notícia antiga, de dias atrás? O corpo de Liu Mei esperou sete horas e quarenta minutos pelo rabecão.

A Ana Luiza sugeriu que escrevêssemos sobre notícias de jornal. Claro que lembrei de Liu Mei, que, na verdade, era apenas a idosa do título não aberto. Pensei: “ela já esperou demais”. Abri o link, descobri seu nome e que tinha setenta e três anos. Só. Na ocasião do atropelamento, disseram testemunhas, ela estava atravessando a rua distraída com um celular. O meia três meia veio e não teve jeito: Liu Mei estirada debaixo do ônibus, durante quase oito horas. Ela tinha cabelos brancos?

“A Coordenação do Serviço de Recolhimento de Cadáveres foi acionada pela Delegacia de Polícia às 12h10”, disse um porta-voz. Liu Mei já estava esperando havia quatro horas. Enquanto isso, outras notícias apareciam na timeline, abaixo e acima de memes sobre a URSAL. Entre risos e bocejos, às vezes pensava na idosa atropelada. Numa sexta de manhã, indo comprar um café, de repente. Ou indo pagar uma conta. Quem sabe apenas dando uma volta sob o solzinho leve.

Fiquei pensando em como deve ser morrer numa sexta de manhã: à tarde o corpo é removido, à noite, todos já esqueceram. No sábado, começa tudo de novo — à mesa, tomam o café-da-manhã.

Liu Mei tinha filhos, tinha netos? Ninguém disse. Também não disseram se estava de sandálias ou caminhava com um par de tênis novos. Me pergunto se estaria usando batom. Liu Mei devia ser bonita, assim pelo nome. Imagino que fosse sorridente e que gostasse de acordar cedo para ver a vida recomeçar.

Há alguns anos, uma idosa morreu atropelada por ônibus na Tijuca. Era sábado de Carnaval. Difícil esquecer o sangue escorrendo para o bueiro, o sapatinho deixado órfão no meio-fio. De manhã também. À tarde, o corpo foi recolhido. À noite, fizeram festa nos blocos de rua. Não consegui pular o Carnaval.

Na sexta da morte de Liu Mei, saí por volta das nove. Fui pro trabalho. Na hora do almoço, chamaram o rabecão. Lá pelas três e meia, o corpo de Liu Mei foi levado para o Instituto Médico Legal. Duas horas depois voltei para casa.

Depois veio o sábado do show do Boca Livre, o domingo dos pais, a segunda do trabalho e essa terça.

Não há como atravessar a rua sem olhar para Liu Mei.

Seu corpo ainda espera.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.