O poder das palavras

Yaminaah Abayomi
Revista Transversal
4 min readJun 14, 2018

Confesso que me aflige pensar que esta mensagem vai ser disparada para um determinado público e que, quando isso acontecer, ela não vai poder mais ser editada, se tornando definitiva feito tatuagem. As coisas que não podem ser desfeitas sempre me inquietaram. No entanto, é inútil se preocupar com esse tipo de coisa, porque a vida é feita da incapacidade de corrigir o passado. Não existem maneiras de reescrever o segundo que acabou de se encerrar.

É claro que todo mundo sabe que viagens no tempo ainda não são um recurso disponível! Talvez o que me aflija, então, seja certa noção de registro. A palavra dita em meio ao caos pode ser levada pelo vento, mas uma palavra cravada à tinta no papel deve demorar mais para se desfazer. Acho que o negócio começa a pegar mesmo quando a gente passa a se comunicar prioritariamente pelo texto escrito, digitado.

Há uns três anos atrás, num papo de bar sobre nudes, um amigo me disse que, em um futuro não muito distante, o vazamento de fotos íntimas não vai significar nada de mais. Segundo ele, vai ser que nem quando você está no seu quarto e olha para o prédio ao lado e, sem querer, acaba vendo de relance a vizinha trocando de roupa. Isso porque existiria hoje uma quantidade tão grande de informações em circulação que a vida útil de cada foto/texto/vídeo estaria diminuindo, por falta de memória do público.

Quando eu penso nisso, sinto um alívio. Se, de certa maneira, faz parecer triste a desimportância daquilo que se fala, também torna a exposição uma atitude bem menos fatal. Então, uma vez ciente de que vocês eventualmente se esquecerão desse texto (risos), volto a pensar sobre o tema que elegi para este ensaio, o poder das palavras.

Acho que sempre estive a par desse tipo de força e, justamente por conta dessa consciência, nunca soube lidar com ela. Desde pequena, tenho dores de garganta. Essas dores se tornaram ainda mais frequentes na adolescência. Não me lembro exatamente o que me deu o estalo, mas conforme fui crescendo, comecei a perceber que meus episódios de amigdalite estavam intimamente ligados a meu nervosismo e certa falta de autoestima para falar em público. A situação se tornou ainda mais crítica quando, lá pelos meus 16 anos, comecei a acordar sem voz em dias em que eu tinha apresentações marcadas ou quando achava que teria conversas mais íntimas e significativas com alguém.

Levou algum tempo entre a percepção do link emocional do meu problema e uma tomada de atitude da minha parte, que fosse além de beber bastante chá de alho quando o estrago já estava feito. Parte da solução que eu encontrei passou pela criação. Além de um reforço na alimentação, eu tenho cantado toda semana.

É bom ter em mente que existe relação entre aquilo que se emite e o que se escuta. Como já dizia Chacrinha, “nada se cria, tudo se copia”: a invenção só pode se dar a partir de referências. Talvez o que eu esteja tentando acrescentar aqui é que a criação é algo inerente à existência de todos, afinal de contas, criamos a nossa vida! Desde quando cozinhamos no café da manhã até as mais difíceis decisões. E inventamos o nosso corpo também — nós nos tatuamos, depilamos, colocamos brinco, escolhemos determinada postura para sentar ou dormir. Muitas das nossas criações culinárias ou comportamentos cotidianos são culturais — ou seja, fazem parte da socialização e dizem respeito não só a gostos individuais, mas também aos grupos aos quais nós pertencemos.

Certamente, eu vivi alguns anos criando doenças inconscientemente. E é óbvio que nessa espécie de autoflagelo, houve uma influência da cultura, pois pouco se valoriza o cuidado de si na nossa sociedade. Para conseguir superar o adoecimento, a minha missão passou a ser, portanto, a de gerenciar as referências que o mundo me dá, fortalecendo meu agenciamento pessoal para escolher com mais consciência quais delas podem ser seguidas e quais precisam ser reinventadas. É como uma espécie de edição.

Acredito que toda a dor de garganta e a dificuldade de falar que eu vivenciei estejam ligadas a coisas desagradáveis que eu já ouvi. No entanto, ter um momento deliberadamente criativo na minha rotina me deu a chance de transmutar tudo aquilo que eu recebo — isto é, tanto as palavras nocivas quanto as benéficas — em sentimentos mais amorosos. E a estratégia rendeu resultados: mês que vem faz um ano desde a minha última inflamação na garganta. Talvez resida nisso algum tipo de poder.

Texto publicado originalmente na newsletter Entrelaçados — http://tinyletter.com/AyodeleGathoni

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