Olhar pela janela dos outros

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readMar 20, 2019
O quarto, de Van Gogh

Eram Paul, John, George e Ringo na parede, tapando buracos ou rachaduras de infiltração. Uma cama no canto, desolada, um móvel de plástico com gavetas, coisas de música. A guitarra que surgiu do nada, e ele começou a tocar. Mas o que me desesperou, a janela — perto da cama, telhado de zinco onde os gatos de pouco peso se aventuravam, era noite, tão escuro.

Ele me deixou para buscar a gata que se achava perdida. Um miado no meio da noite, do nada, precisava voltar para encher a barriga, comida, carinhos, talvez tivesse sentido meu cheiro, ficado com ciúmes do dono, coisas assim. Foi aí que olhei pro escuro.

Não me lembro exatamente por quanto tempo, certamente alguns segundos, o suficiente. Fui engolida. Morri de noite. Ele voltou com a gata no colo, revivi um pouco pela boca, mas parte de mim jazia no escuro.

Não olhe pela janela dos outros quando é noite. Sei que a vontade vai te apertar contra a parede — segundos de solidão, o dono da casa se ausenta, vai ficar com vontade. E então

seus olhos suicidas vão medir a distância entre a vida e o sonho (depois da janela, tudo é sonho) e quererão dar o salto. Aí você dê o pulo do gato (o pulo do gato é voltar atrás) e dê as costas para o vidro. Ali ela estará, reinante no quarto com pouca luz, mais sedutora que você, com esse vestidinho, pedindo, implorando pra que você tente divisar fantasmas de peso tão leve que as telhas de zinco suportam; divisar o que quase não existe é insuportável.

Depois fizemos amor. Descansei a cabeça num travesseiro, a gata subiu nele, junto a mim, e fiz de novo, olhei, olhei, tanto que tive um orgasmo.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.