Fernando Salles
Revista Transversal
5 min readNov 11, 2019

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Parabéns

No quintal sentamos nós, os adultos, que nos entreolhamos sem ter absolutamente nada para dizer. Dedos ágeis deslizam pela tela. Não que não consigamos, mas é que é mais difícil. Não sobrou nada. Política. Trabalho. Família. Clima. Somos diferentes. Tudo está muito diferente. Você pode ajudar a encher as bolas? Claro. Azul. Fuuuuu. De um canto uma moça comenta sobre uma receita de pudim que minha mãe fazia. Vermelha. Fuuuuu. Ela pede o segredo. Fuuuuu. Sorrio e falo que o segredo eram os ingredientes: ela colocava menos leite comum e compensava com leite condensado. Branca. Fuuuuu. A moça (que eu não faço ideia quem seja) me agradece com sinceridade. Vermelha. Fuuuuu. É mentira. Fuuuuu. Óbvio que eu não vou contar. Fuuuuu. O segredo é que ela fazia com pressa. Fuuuuu. Sempre com pressa de resolver tudo. Fuuuuu. Você pode fazer alguns cachos? Não. Não tenho dom para nós, cachos de bolas, coisas que exigem coordenação. Não que eu seja grosso, me entenda, mas tem coisas que realmente não nasci para fazer. Dizer receitas de família, por exemplo. Você pode ajudar com o bolo? Claro.

Saio com mentiras sobre pudins e sorrisos.

Pow: uma bola estoura. É um sinal. Sempre é.

A grande dificuldade no bolo é: emendar um papel de arroz que veio cortado ao meio. Capitão América em duas folhas A4. Eu busco nos olhos azuis da figura uma busca por exata simetria. Você acha que consegue fazer isso? Claro. Porra nenhuma, só não quero voltar para o quintal. Segura aqui em cima. Odeio o capitão américa. Herói sem defeitos. Segura mais firme. Protegendo toda uma nação em nome do seu sacrifício pessoal. Mantém assim. Quem casa com o capitão América? Imagina viver ao lado de alguém sem defeito? Isso, isso, segura ae. Nem mesmo uma enxaqueca crônica, um egoísmo no último pedaço de bolo, um fetiche sexual não assumido pra ninguém. Acho melhor você fazer outra coisa. Sai torta a primeira tentativa. O capitão américa me desconcentrou. Faz o recheio. Pow. Faço. Faço o recheio. Cozinho. Me movo de um lado para o outro: só não quero parar. Do bolo, o Capitão América me olha e me julga: você está sendo o herói que esperamos que você seja? Doce de leite com coco. Ficar em movimento é a garantia de não pensar em tudo o que o Capitão América deseja que eu pense. Mas você está sendo um bom herói? O que mais quer eu faça? Nada, agora é o glacê. Não tem mais bolas? Você está sendo um bom sujeito? Fica com as crianças lá fora.

Não estou, Capitão.

Do que vocês estão brincando? Pow. De carrinho, quer? Quero? Posso? Toma. No carro de plástico e vou para frente e para trás. Vrummm. Estou dentro do carro e sou: A) um homem, meia idade, uma freada brusca desviando de uma criança, atropelo um cachorro, au au au, saio do carro, sangue e tripas, a dona do cachorro vem, eu me apaixono de cara, desculpe não era a intenção, você matou meu cachorro seu filho da puta, me apaixono mais ainda, desculpe não foi a intenção, ela saca a arma, me apaixono mais ainda, calma, calma, um tiro seco no peito, estou morto/ B) um homem jovem ,estou bêbado, curvas fechadas, é de noite, adrenalina, saiam da minha frente seus desgraçados, um borrão, eu freio, bum, o que foi isso? saio da carro tonto e vejo um homem morto atropelado, sangue e tripas, as pessoas chegam perto de mim e digo que não foi culpa minha, alguém me empurra, bêbado desgraçado, alguém me dá um soco na cara, calma, calma, um porrete vem na minha cabeça, gosto de sangue na boca, eu apago/ C) Sou uma senhora idosa dirigindo meu carro, vou devagar, crianças brincam, um quebra mola atrapalha minha direção e jogo o carro sobre uma menininha, ela grita, eu tento parar, não consigo, saio do carro desesperada, você está bem querida? tripas e sangue, o que eu fiz? a mãe da menina vem e me olha, eu a olho de volto e reconheço aquele olhar, é a filha que eu dei para adoção quando ainda era jovem, matei minha neta, a mulher me olha de volta, a lágrima vem junto com um aperto no peito, infarto/ D) um homem jovem que dirige seu carro pela noite escura, uma sombra surge na minha frente e eu tento desviar, mas não consigo, atropelo, amaço a lataria, saio e observo o rastro de sujeira pelo chão, sangue e tripas, olho ao redor sem encontrar nada pela noite, você está bem? grito, silêncio, um golpe forte atravessa meu peito, perfura o pulmão, não é humano, pisco os olhos, meu corpo para, está escuro, morro. / As crianças me olham. Pow. Falei alto. Você não sabe brincar. Não sei. Nunca soube. Você não pode falar isso com a gente que é criança (frase de uma criança de 5 anos). Desculpe. Você quer ter filhos? Já não sei. Você quer brincar comigo de futebol? Não. Não posso. Do que você quer brincar? De beber, mas o Capitão América me olha lá da cozinha. Vai ficar aqui brincando com a gente? Não. A festa já tá acabando e eu só espero pelo bolo. Quer refrigerante? Não. Quer pipoca? Pow. Não. Pare de me olhar Capitão América. O que você faz?

Volto aos adultos.

Olho a hora. Nada aconteceu. Os adultos são os mesmos, o silêncio é o mesmo e o céu também _ nem mesmo as nuvens se movem. Penso em correr pelado, falar mal do presidente ou dar um soco em alguém _ não dá pra viver sem conflito. Pow. Malditas bolas. Quer brincar de carrinho? De onde esse moleque saiu? O bolo chega. Ebaaaaa. Vamos cantar parabéns? Preciso. Parabéns pra vocêeeeee, nessa data queridaaaaaa. Faço umas fotos enquanto a cabeça vai e volta. Muitas felicidadeeeeees, muitos anos de vidaaaaaa. Muitos anos de uma vida diferente da minha vida. Vamos cortar o bolo! Do bolo o Capitão me observa, eu dou risada, não vou salvá-lo. O corte vai no olho azul e se transforma em primeiro pedaço _ que não vem pra mim, o que já era esperado. Você entende meu sacrifício, né? Entendo, Capitão América, mas questiono um pouco sua profunda lógica cristã. Você quer um pedaço de mim? Aproveite. Enfio a faca na cabeça do Capitão: doce de leite com coco. Cala a boca caralho.

Num segundo temos: bolo, migalhas, bolas explodindo, crianças sujas de glacê e adultos desinteressantes aliviados que aquele compromisso chega ao fim. Você se fudeu, capitão, e eu já sabia. Do que adiantou ser um papel de arroz tão bonito se o seu destino sempre foi esse? Você quer mais bolo? Não, obrigado. Estou bem. Você quer mais refrigerante? Uma muda de planta? Um filhote de gato? Uma oração para a semana? Uma comidinha pra levar? Não. Estou bem. Pow. Mentira. Nunca estou e só mesmo eu e o Capitão sabíamos.

Na mochila só levo um pedaço de bolo e a lembrança de um par de olhos azuis.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva