Pato que pato

Liana Monteiro
Revista Transversal
3 min readSep 26, 2018

Tinha os olhinhos esbugalhados. À noite dava medo. Chapeuzinho marrom, caipira, macacão. E patas. Bico de pato, formoso periquito. Tínhamos química. Jogava-o para o alto, qua-qua-qua, ele se divertia à beça!

Eu pisava na barriga dele, era macio. Gostava quando eu o tirava do sol e o abraçava, um calorzinho. Pato que pato, o que está fazendo aí? De vez em quando ele aparecia em cima do guarda-roupa. E eu dizia você não é gato pra subir aí, não! O gato era o Salomão, mas aí já é outra história.

Tem uma fotografia do pato que pato muito antiga, eu de fraldinhas, cheirando a poeira dos bichos, mas nem espirrava. Pato que pato era mesmo um pouco assustador. Às vezes, de noite, falava. E nem era qua-qua-qua. Era língua de gente mesmo, com verbo e tudo. Não lembro das nossas conversas, só que ele ria muito. Eu devia contar boas histórias.

Minha mãe dizia que o pato que pato não era coisa boa. Sumia e aparecia em outro lugar. Não quero mais esse bicho aqui, não. Vou jogar fora. Eu chorei tanto que o pato que pato começou a chorar também. E ele nem era disso… Minha mãe o deixou comigo, mas à noite ela colocava pato que pato dentro do armário.

Um dia, ele amanheceu perto da minha cama. Eu nem tinha visto ele sair, estava dormindo. Mas fiquei quietinha, não contei pra ninguém. Pato que pato gostou do meu silêncio.

Um pouco maior, deixei o pato que pato pra lá. Eram outros brinquedos. E ele estava tão velho, tão encardido. Dava vontade até de espirrar. Pato que pato ficou furioso. Teve uma vez que apareceu na cama da minha mãe. Já passou da hora de jogar essa porcaria fora! Dessa vez eu concordei. Ele estava passando dos limites. Se eu não o queria, que entendesse. Já era velho o suficiente pra perceber que as coisas acabam, até as amizades mais bonitas.

Foi pro lixo, porque minha mãe não teve coragem de dá-lo a ninguém. Pato maligno. Não é que o bicho apareceu na casa de vó Antônia, que mexia lá com espíritos e coisas assim? A vó contou que ele estava magoado, cheio de raiva. E que se eu não o quisesse de volta, ele iria me revirar do avesso. Fiquei com medo. E triste, porque ainda gostava dele. Será que tinha esquecido das vezes em que o defendi? Ou de quando tinha guardado seus segredos? Esqueceu tudo, aquele pato que pato!

Minha mãe pediu uma reza. Minha vó me deu a mão e começou a falar coisas que até hoje não entendo.

Deu certo. Pato que pato por fim se calou. Bico fechado, aquela lição.

Outro dia vi no chão um patinho feito ele, a estopa pra fora, todo esburacado. Até deu saudade do pato que pato. Mas passou.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.