Pela milésima vez

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readJul 25, 2018

De vez em quando sento na última fileira do ônibus. Lá vibra mais. Se dou sorte, fico na janela, observando pastas pretas, sapatos engraxados, cigarros mortos. Dou um perdido nos meus compromissos, finjo que é um domingo de sol. Risadas múltiplas me esperam no mar de Copacabana. Antecipo a impressão da água na pele, entrando pelos poros, inchando a carne. Fico salgada. Ninguém desconfia.

Às vezes aparece uma bunda bonita, debaixo de calça bege, e eu imagino. Esqueço dos números e dos trajetos, lembro de uma mão quase tocando minha coxa, um estranho. Talvez seja pecado querer quando o outro não quer. Ou quando não sabe sequer dos tremores que sobem o corpo, as linhas aéreas. Se for, peço perdão a Deus e me deito com o diabo. Ah, o diabo! Ele vem de madrugada, arrasta o corpo de fininho e sobe em cima de mim.

Hoje cheguei em casa com vontade de fazer vitamina. Tirei a roupa, apertei o botão. Tirei a tampa, apertei as pernas. Voltei pro quarto e ouvi pela milésima vez que nunca. Olhei o relógio, quinze para as dez. Eles passaram desavisados na calçada, beijaram-se e engoliram a luz dos postes.

Abri a geladeira e meti a cara lá dentro. Deixei que gelasse. Nas pontas do cabelo, dois pensamentos. Uma piscina azul, uma arminha de brinquedo, um soco no estômago. E depois uma lata de lixo, uma mochila verde, o hino nacional. Não sabia de nada, de nada. Mas tinha vontade. Me apertava em frente ao espelho, sumia, sumia. Eles falavam com bocas molhadas, sorriam de maldade. Nunca.

Nunca comi morangos. Nunca abri um pacotinho de biscoito. Nunca descasquei o esmalte das unhas.

Nunca soprei uma vela. Nunca soquei um lado da cara de cada vez. Nunca mordi uma lata de ervilhas.

Mas os pelos cresceram desde a última vez. É preciso arrancá-los com pinça, um a um, doendo. Quem sabe jogá-los na calçada, fazendo chuva, secando as bocas. Ou girá-los na máquina de lavar, para extrair toda essência de desejo.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.