Pequeno Horror

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readJun 2, 2018

Olhar para baixo, para a calçada. É feriado, Corpus Christi. Cristo morreu na cruz. E no chão de cimento caiu. Havia pedregulhos. Garrafas quebradas. Pombos estraçalhados. Olhe para cima, sinal da cruz. Peça perdão pelos seus pecados. O sol está a pino às seis da tarde. O mundo está ao contrário. Os mercados vão sendo abastecidos, e você com medo de tudo. Ali teve assalto dois mil anos atrás. Ali escorreu o sangue de uma mulher. Lembro do sapatinho dela antes do atropelo. Tropeço. Não há como seguir em frente sem olhar para esses bueiros. Sente? É a vontade de cair, ir tão fundo no escuro e no sujo que a necessidade da rua será imensa. Você vai querer voltar à rotina enfadonha depois de três dias. Será no domingo. Você vai querer refazer o banquete. E comer até ficar de barriga cheia. Você vai querer de verdade um beijo. E vai vomitar dentro dele. Você vai querer torrar no sol da praia e se jogar depois no mar para sentir o choque térmico. Grande quantidade de terra e areia, não havia mais água, diz o repórter antes do intervalo. Ele também pressente a morte, a secura, o nada. E ele também sabe da vontade que haverá quando tudo tiver acabado. Tudo acabou nesse exato momento, sete e trinta e cinco da noite. Mais cedo, fez um sol silencioso. Havia algo errado. No chão, cacos de vidro e restos de ratos. Havia algo estranho. Era o silêncio premonitório do fim. Sei que estou morrendo a cada dia que passa. A cada dia que recuso o amor. É tudo tão claro. E a minha pele é áspera.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.