Seis improvisos sobre a vida

Liana Monteiro
Revista Transversal
4 min readApr 8, 2019
Miosótis, também conhecidas como Não-me-esqueças

Um texto metódico. As partes calculadas são seis, por três motivos:

Um, porque foram seis anos até o cálculo do texto.

Dois, porque é o número da sorte da minha avó.

Três, porque o número do meu anjo cabalístico é cinquenta e um (cinco mais um é seis).

Um texto, portanto, numérico, onde os números indicam um pedaço de coisa que não se sabe o que é.

O coração:

é um órgão muscular oco, do tamanho de um punho fechado, de um útero, do meu útero. Fica entre os pulmões e quando respiro ele bate mais forte. Bate mais forte.

tem três camadas, o pericárdio, o miocárdio e o endocárdio. Como este texto, o coração tem três motivos: um, a membrana que o envolve; dois, o meio, mio, a parte que é sua entre outras duas; três, a camada lisa que é seu interior. Bate, e as três partes vibram juntas, em uníssono.

Pelo coração, passa o sangue venoso e o arterial, ou seja, passam todas as partes do corpo, lembrança e futuro, que, no corpo, se chamam: sangue.

é a porta de entrada das vibrações que acometeram os dedos dos pés e a cabeça, e entre eles, o miocárdio do corpo, que é todo o corpo entre os pés e a cabeça. Mio.

Ou seja: o coração, este que bate, vibra, recebe e envia, este que é meu e que vive em mim porque vivo (e eu vivo porque ele vive) é alguma coisa, e não porque digo que é, mas porque sinto.

E porque já ia esquecendo, mas não esqueci: bate 189.216.000 vezes em seis anos.

Endereço do Ferreira Gullar:

Visconde de Pirajá, não posso colocar número porque é confidencial. Meu pai descobriu e secretamente me passou, para que eu pudesse enviar a carta que pretendia escrever. Achava que tínhamos muito em comum; iniciaria com minha cartinha sobre Rimbaud (jurava que tinha descoberto o motivo que o levara à Abissínia) uma longa e histórica correspondência. Elas estariam nas coletâneas de cartas do Ferreira Gullar. Mas ele morreu e eu não tinha escrito nada.

Fico triste? Na-na-ni-na-não (um, dois, três, quatro, cinco). A carta não escrita e a morte combinam e são parceiras. Eu e Gullar nos tornamos amigos não-concretos e bebemos cicuta até hoje.

O Cavaleiro Inexistente:

Estávamos na Praia de Botafogo e foi nosso primeiro beijo. Em algum momento (lembro só do banco de pedra debaixo da bunda) ele me falou desse livro, do Ítalo Calvino. Dois anos depois comprei o livro e estava aos beijos debaixo de chuva com um alemão. O livro molhou todinho.

“God is in the rain”, disse hoje a Lalesca, num banco de praça, sete de abril de dois mil e dezenove.

Florentino Ariza:

Queria transcrever uns trechos, mas meu pai levou o livro. A vida é improviso. E improviso é saber de cor o que ainda não existe. Lembrança e futuro, eu quero rir!

O que me lembro de Florentino? Comia flores e bebia perfume, disso tenho certeza. Participou de todos os Jogos Florais (me lembrei da Suíte Floral do Andersen Viana, que nunca ouvi), vestia preto todos os dias e guardava carinhosamente numa lista o nome das mulheres que comia. Faltava uma: Fermina Daza.

E o que mais? Mergulhou até o fundo do mar para buscar um tesouro para Fermina (só agora percebo que é o feminino de Fermín!) e comprou o espelho que conteve por alguns minutos o reflexo dela.

Um dia, não sei se pensou ou se disse, Fermina considerou que Florentino era uma sombra.

Assim eu me sentia, mas foi só perceber que eu desejo e que desejo e que desejo para entender que uma rosa é uma rosa é uma rosa.

E vou comê-las todas.

Meu reflexo estará bem satisfeito no espelho que pendurei na parede.

Persecuta:

Me embriaguei daquelas folhinhas de hortelã que refrescam um mojito. Por esse motivo, El Motivo, esqueci de tanta coisa, o que, na verdade, é minha fonte secreta de prazer: vou lembrando aos poucos, em doses terapêuticas de cicuta, como se tivesse mojido várias vidas até chegar aqui: persecuta.

Aprendi com o Cortázar (ou com a Sylvia Molloy) que é possível colocar dois pontos numa frase que veio de: eu não sei de nada e é por isso, por esse motivo, el motivo, que posso fazer tudo, inclusive:

alojar no texto o que eu sinto e não posso dizer, pois não há palavras. Como construo um texto sem palavras?

Ou

Existe alguma coisa debaixo das palavras?

Ou

Eu sinto.

A sexta e última parte:

Pois calculada e prometida. E me encontro num tremendo embaraço, pois não imaginei o que estaria aqui e, ao mesmo tempo, é tudo tão óbvio. Eu estou aqui, tremendamente viva, as três partes do coração batendo, Ferreira Gullar vivo-morto, o livro seco e estrebuchado, Florentino e Fermina no ir-e-vir do caralho, e a Persecuta eu ouvi hoje de manhã.

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Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.