Sobre escolhas

Ítalo Silva
Revista Transversal
3 min readJan 23, 2019

Era tarde demais quando percebi que a luz também é uma escolha. A madrugada era triste, anunciava a chegada de um dia triste. No espelho eu via o mesmo rosto encovado de todos os dias, uma silhueta pálida que nada lembrava a criança que via seres de outro mundo nas nuvens, que sonhava em conhecê-los um dia. Hoje, esses seres se tornaram monstros, sombras, e estão todos contidos no meu olhar. Me lembram a todo instante o que cada um fez para morar ali. Talvez tenha começado com a morte de minha mãe. Todas as nuvens não passaram de nuvens desde então, e a única coisa que eu vejo nelas é a chuva, a mesma que fez o carro derrapar e quebrar o frágil corpo dela. Meu pai, bêbado e enraivecido, no mesmo estado de muitas outras noites, resolveu nos prender dentro do carro a fim nos levar de volta para casa. Fugimos da sua loucura para a casa da vó, mas ele nos encontrou, ninguém imaginava que ele havia descoberto nossos planos muito antes de partirmos. Chegou invadindo a casa da vovó, puxando a minha mãe pelo cabelo até dentro do carro. Ela gritou que eu não devia ter feito isso, mas num impulso intuitivo agarrei o seu braço e fui junto com ela.

Era noite, a chuva trouxe consigo uma névoa densa, daquelas que guardam segredos, silenciam desesperos. São todos ingredientes que tornam perigosa uma ida a outra cidade, ainda mais quando existe uma estrada deserta e cercada de montanhas para chegar até ela. Mas tudo poderia ter tido uma certa chance de sucesso se o meu pai não estivesse bêbado. Soube mais tarde que a vovó tinha chamado a polícia, e como era de se esperar eles acabaram chegando tarde demais. Tarde demais para a minha mãe. Eu sobrevivi, com um braço lacerado e costelas quebradas, mas com a proteção do banco traseiro. Meu pai também sobreviveu, por incrível que pareça o imbecil teve ainda menos ferimentos que eu; saiu do acidente, ileso, direto para as celas, e vai apodrecer lá até o dia que a morte vir tomá-lo. Hoje ele se diz doente e implora pra eu ir vê-lo, necessidade essa que nunca tive.

O fato é que a notícia dessa noite fez doer essa perda que eu achava ter superado. Me enganei pensando que esse tipo de ferida pudesse ser curada, mas não pode, no máximo a gente guarda, enfia nos porões mais profundos da consciência, aprende a conviver. Até nos darmos conta da ausência.

Como agora.

Tornei a vida da minha esposa insuportável e ela decidiu ir embora. Nessa mesma noite, me entupi de drogas para lidar com a decisão dela. Verdade seja dita: me entupo de drogas para lidar com qualquer decisão. E, tomado por vozes e impulsos ensandecidos, resolvi pegar o carro e ir buscá-la, demorei poucas horas até a encontrar na casa do homem por quem me trocara, desmaiei o idiota e arrastei ela até o carro, então a levei de volta para a nossa casa, para recomeçarmos; as vozes diziam que, naquele momento, ela queria aquilo tanto quanto eu.

A mesma história de minha infância se repetiu, ela saiu daquela situação morta e eu ileso. Na hora não aceitei a segunda parte do destino, fugi dali, roubando o carro de pessoas que estavam perto, deixando o seu corpo em torpor para trás. Junto com o meu passado. De início ela sobreviveu, foi levada em coma para o hospital, estado em que permanecia até ontem, quando liguei pro meu filho e ele me disse que ela não aguentou os ferimentos. Daqui a pouco, assim que amanhecer, vou para o funeral vê-la pela última vez e me entregar. Enfim repetir a sina de meu pai. Tentei entendê-lo a vida inteira quando na verdade devia ter entendido a minha mãe, e acabei me tornando a mesma pessoa, caminhando os mesmos passos. Para mim, essa era a única escolha que eu tinha, mas quando percebi que a luz também é uma escolha, que eu podia ter calçado sapatos diferentes dos dele, já era tarde demais.

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