Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readApr 12, 2019

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Sumir

Você tem medo. Eu insisto. Não entende porque nunca quis entender. Tento explicar, palavras, frases e poesias… Não adianta. Você finge que o universo cabe na sua mão e cria um modelo explicativo de tudo. Mas, no fundo, eu sei o que é.

Você tem medo.

Olho para você do outro lado da rua enquanto os carros passam, os ônibus passam, as crianças de uniforme escolar passam, as senhoras com bolsas de mercado passam e os guardas de trânsito apitam desordenadamente. Priii. Você some. Se esconde pela cidade. Sobe ladeiras. Desce entre as lojas de bebidas. Vira à esquerda no armarinho de linhas. Fica no segundo andar dos bancos em busca de ar-condicionado. Priii. Eu fico girando, do outro lado da rua, olhando o que poderia ser, mas não será. O céu é uma tela azul que me engole enquanto você se distancia.

Você despista minhas falas, mas confessa. Sangra. Escreve verdades e se liberta… Até que o medo te apossa. Você foge. Eu sei. É o medo. Não é você. Eu entendo, mas não perdoo. Não consigo mais perdoar. Eu fico aqui, inventando momentos: é preciso sobreviver de alguma forma. Escrevo seu nome, faço um desenho e tento colorir com meu jogo de lápis em 48 cores. Sua boca varia entre o vermelho escuro e um marrom claro… Mas nunca é você. Nunca sou eu. Me perco no azul do céu que não consigo pintar. Tento de novo achando que vai funcionar. Mas não funciona. Eu não funciono. No final, rasgo o papel em branco de tanto tentar apagar.

No futuro haverá um arquivo encontrado por alguém de mau humor que precisa fazer limpezas periódicas. Nele estarão fotografias, documentos, cartas, momentos, personagens e narrativas. A nossa não estará lá. Nem cartas, nem fotos, nem juras de amor amareladas pelo tempo. Não haverá filhos, netos e bisnetos que nos encontrem. Todas essas histórias morrem comigo, todos os dias, enquanto eu sei que elas são apenas histórias. Você afirma: eu não sou uma pessoa boa pra você. E some. Some. Eu fico aqui, sem entender. Perdido na rua. Perdido no tempo: horas, minutos e segundos de silêncio. Fico olhando para os lápis enquanto tento encontrar a cor com a qual pinto a coragem que você não tem.

Sumir: palavra que o dicionário não traduz e o coração não entende.

De Jericoacoara eu olho para o sol, deitado na areia da praia, pensando enquanto a solidão deixa frio o meu corpo em plenos 38°C. Pensando enquanto tudo é muito menor quando não é compartilhado. Pensando em como acabar essa carta que acaba junto com você.

Olho para o céu e desisto: guardo todos os lápis azuis.

Em minha cabeça, os guardas continuam apitando, as senhoras ainda carregam suas bolsas, as crianças correm para não atrasar na escola, os ônibus passam, os carros passam e a figura do que seria você torna-se apenas uma lembrança do outro lado da rua.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva