Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readMar 13, 2019

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Tum

Um música sempre lhe passou pela cabeça. Como ela é? Eu não sei direito, mãe. Mas é um música mesmo ou um zumbido? É música, faz assim: Tum-tumtumtum-tum. Que pode ser, doutor? Tem que investigar melhor. Tum. Atestado de doença dado: o paciente reclama de sons no interior de ambos os ouvidos, até o presente momento o fator é desconhecido. Tum. Ele tem um zumbido no ouvido que não passa. É música, mãe. Por todos os dias o som se repete. Tum. Mas é grave, doutor? Tem que investigar melhor. Passa os anos acostumado com agulha, éter e gente de branco. Tum. Passou, filho? Tum. Não. Tem certeza que não é um zumbido? É uma música, mãe. Exame de imagem: descarte de lesão em ambos os tímpanos, aspectos fisiológicos normais. Você ouve mais algum som que vem da sua cabeça? Não. Observação: não descartar esquizofrenia ou episódios paranoides. Vamos testar uma medicação. O garoto toma remédios todos os dias. Tum. Várias vezes ao dia. Tum. Vê a adolescência começar sem um laudo. Tum. Tem certeza que não é zumbido, filho? Não, mãe. Acreditamos que ele é um caso para estudo clínico. E agora, doutor? Vou indicar alguns especialistas. Tum. A mãe não deixa sair de casa. Pode ser um coágulo, doutor? Tum. Não deixa jogar futebol, namorar, sair com os amigos. Pode ser câncer, doutor? Tum. Não sabemos o que há na cabeça do seu filho, senhora. Mãe, deixa eu tocar violão? Não. Tum. Tem que proteger os ouvidos. O médico não disse isso. Mas eu estou dizendo. Tum. Começa com antidepressivos na adolescência. Há alguma relação, doutor? Não podemos afirmar. Tum. Como você se sente? Triste. Pode ser sinal de que, doutor? OBS: retomar as investigações de doenças paranoides. Você diria que ele tem um comportamento estranho? Não, só é muito quieto. Tem que manter a observação. Tem certeza que não é um zumbido, filho? Tum. Volta tarde da escola um dia. Cheiro de cigarro. Onde você estava? Com uns amigos. Não quero você fora de casa assim sem avisar. Tum. Tava fumando? Tava. A mãe chora na frente dele, finge desmaio. Tum. Doutor, o que o cigarro pode fazer nesses casos? Você está fumando, rapaz? Entrei numa banda, só faço de vez em quando. Você faz o que na banda? Toco guitarra. Pode tocar em banda, doutor? Pode sim. O som não vai fazer mal, doutor? Não sabemos. Tum. Mas não seria melhor ele ficar em casa, doutor? Não fume e toque sua guitarra. Tum. Não vou tomar mais remédios. Mas e seu antidepressivo? Não preciso. Tum. Ele largou os remédios, doutor. Precisamos fazer o tratamento para depressão corretamente. Tum. Foda-se, não vou tomar. Como tá o zumbido, filho? Tum. Não é zumbido. Tum. Vai pra onde? Tocar. Onde? Tum. Bar do zé. Esse lugar é muito perigoso, não? Não. Tum. Toma o seu remédio. Não. Tum. Tum. Tum. Alô, doutor, ele saiu de casa. Não voltou. Preciso de ajuda. Ele vai voltar, senhora. Mas ele é doente. Ele vai voltar, senhora. Onde você estava? Tocando com a banda. Está tudo bem? Sim. Tem certeza? Sim. Por que não me avisou onde ia? To bem. E o barulho? Foi maneiro. Não, o zumbido da sua cabeça? Botei na guitarra. Tum-tumtumtum-tum. Não quero mais remédios, nem médicos, nem nada. Você precisa tratar o zumbido, menino!

O zumbido faz parte de mim.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva