Fernando Salles
Revista Transversal
3 min readMay 20, 2019

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Turvo

Toc. Toc. Toc. Quem é? Toc. Toc. Toc. Quem é? Não há ninguém atrás da porta. Nunca houve. Isso acontece algumas vezes ao dia e tem duas explicações: ou é o gato do seu pai ou um delírio. Como dessa vez. Repete a si mesma: não tem ninguém atrás da porta. Repete sempre que precisa. Às vezes vê uma mulher gorda, alta, de terno e segurando um monte de papéis na frente do seu quarto: você se chama Fernanda Monteiro de Lima? Sim. Tenho um emprego para você. Era o que mais queria: um emprego. Usar crachá, comer fora, circular pela rua como as meninas que via quando estudava. Mas a mulher era uma mentira, já sabia. Não conseguia emprego. Vivia com o dinheiro que o pai lhe dava. Você é a filha do Doutor Lima? Sou sim. Pobrezinha. Louca. Sussurros. Sempre louca. A louquinha que se formou em artes para ter algo para fazer. Pinte uns quadros para se distrair, filha. Quando pequena cortava os braços, sentia prazer, escondia dos outros. Era mais forte. O que você está fazendo, filha? Nada. Toc. Toc. Toc. Não há ninguém atrás da porta. Mas será que é o gato? No quarto escuro as cortinas balançam e jogam seus tecidos finos nos livros da prateleira. Olha para Uma vida interrompida, de Alice Sebold, e pensa como uma garota poderia ter sobrenome Salmão. Queria ter sobrenome de peixe, mas era de fruta: Lima. Lima que é muito amarga e pouco doce. Como sua vida. Eu vou cuidar sempre de você, meu anjo. Não se preocupe. Não, pai. Na graduação tirava notas altas em pintura e baixas em indumentária. Não entendia muito bem como combinar as roupas: muitos detalhes. Mas as cores na tela eram mais vivas; dançavam, falavam com ela. Menos o vermelho que sempre lhe pedia coisas difíceis. Use o estilete com força em modo vertical. Se afastou do vermelho. Toc. Toc. Toc. Não há ninguém atrás da porta. Não lhe faz bem, meu anjo. Não era uma boa cor. Não pai, não quero. Deitada na cama seus olhos vibram, o peito explode. Passa as mãos no corpo sentindo o sobrepeso aparente causado pela medicação. Papai só está cuidando de você. No quarto escuro tudo ficava turvo. Pílulas: verdes/brancas, brancas/vermelhas, azuis/verdes, Vermelhas/azuis. Toc. Toc. Toc. Não há ninguém atrás da porta. Tenho um emprego para você, Fernanda. Mentira. Não tem ninguém atrás da porta. Tenho emprego para você, tire a calcinha e abra bem as pernas. Vai começar. Abra bem as pernas ou não terá o emprego. Queria estar morta olhando sua vida pelo outro lado guiando todos os outros para continuar. Papai vai cuidar de você, filha, fique calma. Cortinas fechadas. Olha para o lado enquanto silhuetas a observam, sorrindo. Tome suas medicações corretamente. Queria só um emprego para sair dali. Toc. Sempre foi o que quis. Toc. Algumas chance de sair dali. Toc. Louquinha. Não tem ninguém atrás da porta, meu anjo. você quer um emprego ou não quer?

O quarto fica turvo enquanto os dedos deslizam para dentro de sua vagina.

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva