Vagas estrelas

Liana Monteiro
Revista Transversal
2 min readSep 19, 2018

De noite fechava a porta. A cortina rasgada esperava tranquila, naqueles tempos não fazia vento, nem chuva. A cama ao lado da janela. A mãe tinha ensinado três rezas para todos os filhos: o Pai-Nosso, a Ave-Maria e a que ele mais gostava, o Anjo da Guarda. Tinha aprendido a ouvir sua voz. Timbre de criança, frágil e sonolento, voz de quem chama no sonho, quando se está na beira da cama. O anjo não tinha rosto, nem luz. Ficava ali mesmo, no escuro, com ele até que todos os carneirinhos tivessem sido contados.

Um carneirinho.

Dois carneirinhos.

Três carneirinhos.

Até que um dia o anjo sumiu. Parou de falar baixinho, escafedeu-se. Deve ter pulado a janela.

Por um tempo, ficou triste, sentia-se sozinho. Mas acostumou-se às estrelas lá em cima, que lhe faziam companhia.

Estavam distantes, disso ele sabia muito bem, mas dava para vê-las. Algumas, ele aprendeu, tinham o brilho variável. Por alguma explosão, ou até por causa do ângulo em que a estrela se dava a ver, a luz era mais forte ou mais fraca a depender do dia. Então ele também era uma estrela. Havia as tardes depois da escola, suor, banho e o almoço. Cada momento era uma luz. Sou uma estrela variável, sou uma estrela variável.

Do anjo nem se lembrava mais, era tanta estrela. E pelo que diziam elas não iriam desaparecer. Na verdade, a professora explicou, há estrelas que já se apagaram, mas de tão distante que estão, sua luz chega a nossos olhos depois da morte. Vida após a morte. Já tinha sido inventada, como ninguém percebeu?

Ficou pensando. Há estrelas que brilham depois da morte. E se ele, estrela, já tivesse morrido?

Foi num dia em que ficou trancado no quarto, a cortina fechada, um abafamento, o trânsito lá fora parado. A mãe tinha partido. Os irmãos mais velhos foram para longe. Restavam ele e uma tia velha. O estômago roncava. O corpo suava. O cabelo despenteava. Que fosse. Que fosse a luz lá fora, nos postes e nos semáforos; que fosse a tia roncando no quarto vizinho, cansada da vida; que fosse a sorte que pisa no pé e não pede desculpas. Ficaria ali, até a última explosão.

Um dia, contou as estrelas, como carneirinhos que pulam no céu.

Uma estrela.

Duas estrelas.

Três estrelas.

Começou a lembrar. Havia algo antes, um sentimento, uma presença. Uma voz.

Começou a falar. A voz grave, rouca, há quanto tempo não falava?

Falou com as estrelas. Palavra, palavra. Ficou olhando assim pro céu como se fosse a coisa mais bonita, como se fosse ele mesmo. O universo ecoava a sua voz, uma vibração no peito, as ondas levadas pela noite, a cidade tremendo, as pessoas passando.

Começou a cantar:

Vagas estrelas.

--

--

Liana Monteiro
Revista Transversal

Quase azul. Uma canção de jazz, uma caminhada pelo vento. E vou levando a vida. Escrevo: contos, crônicas, diários, feitiços e, sobretudo, poesia.