Fernando Salles
Revista Transversal
4 min readMay 3, 2020

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Imagem: O Desespero _ 1982 _ Edvard Munch

Vento

Doutor, você sabe que estamos todos fodidos, não é? Fui cesurado e estou aqui: 24 horas de paciência. Quase obediente. Um aprendizado de acordo com as políticas de comportamento das redes sociais. Como eu podia não mandar ele pra casa do caralho, Doutor? Segunda-feira. Acordamos e damos bom dia para todos que não existem: movimente o corpo, coma adequadamente, faça exercícios (você tem tomada suas pílulas?). Trabalhe e siga o barco. Vai passar. Se olhe no espelho para que tudo fique bem. Sério, Doutor? Sabe que sou feio, né? Terça-feira, você está de pé. Olhos rápidos pela tela, contando o tempo: o trabalho da semana, as aranhas da varanda, o sentido das frases e os conceitos dos livros de filosofia. Doutor, eu tenho evitado os remédios para não morrer. O meu coração faz assim: tumtumtum. Ele vai parar. Eu não paro e o mundo também não. (vamos mudar a medicação). Quarta-feira: você faz sexo com o futuro e acaba não gozando quando descobre que está sendo traído pela imagem que faz de si mesmo. Tá me enganado seu filho da puta? Não, não estou, prometo (é mentira?). Passo as horas tentando ficar bem enquanto observo a paralisação em um dia de sol; um sol amarelo que seca as roupas no varal, mas que não permite subir nenhuma pipa. Não venta. Um céu azul lindo e sem graça. O vento pode morrer, Doutor? (fale da censura). Eu taquei uma porrada na cara dele. (como?) Juro que imaginei isso. Não foi o suficiente. Quinta-feira é um dia antes do fim. Há uma animação. As notícias pulam aos ouvidos junto com algumas porcentagens. “Passamos o número de mortos da China”. Talvez tenhamos um fim. Talvez o fim seja em nós mesmos. O vizinho bota uma música sertaneja repetida pra tocar. Doutor, eu não aguento. Eu vou explodir. EU VOU EXPLODIR CARALHO. (não seria melhor os remédios?). Urubus rondam a casa. Rondam o mundo. Vão nos buscar. Vão nos buscar, Doutor? Sexta-feira e a casa é limpa: cheiro de alvejante. Cheiro de tempo estagnado. Cheiro de cheiro que ninguém sabe o que é. (o que vai fazer no fim de semana para se divertir?) Doutor, eu tenho pensando muito em como matar o senhor. Confesso. Mas me contenho todas as vezes que penso em como esconder o corpo. (não seria a hora dos remédios?). Dissolver, picotar, enterrar, queimar. Um fêmur adulto não é o tipo de coisa que se livra pela descarga. (respire fundo). Aos sábados chove, pela manhã faz frio e parece que a cama é um lugar diferente por algumas horas. Dá vontade de ficar. Eu minto pra mim mesmo, mas aí lembro do flerte perigoso do futuro _ eu também quero matar meu eu do futuro, mas sempre rola esse problema da ocultação do corpo, né? Eu levanto, olho pro teto, minto um pouco sobre a dissolução dos conflitos e acabo me apoiando em um livro qualquer. É tudo mentira e eu sei. Tumtumtum. Gravo uma coisa e outra. Dou risada e morro. Morrer é inexorável. Eu sempre morro, Doutor. Retorno aquele estado em que acho que não consigo mais prolongar as sensações de endorfina/oxitocina e concluo que a realidade é só uma imagem onde a gente habita sem ter muito controle. (os ansiolíticos têm funcionado?) Uma fotografia que a gente gasta horas reparando nos detalhes, mas sabe que absolutamente nada diferente vai acontecer. Doutor, tenho pensando muito sobre imagens. Pensando muito sobre corpos, gorduras, fluídos, números e sobre como meu comportamento me levou até essa situação. Estou banido, não é mesmo? Você entende, Doutor? Eu estou fodido com toda essa vida que se esbanja em torno de mim e que não sei muito bem o que fazer. (você tem meditado?). Como aquelas pessoas obesas que entram num ônibus pedindo licença. Eu saio passando carregado isso tudo, olhando feio para os outros e mandando pra casa do caralho. Ocupo dois, três assentos: coloco o pé pro alto e sigo a viagem. Não estou mais muito preocupado com o que vão pensar. (Vou recomendar um aumento de dose). Eu quero mesmo é o que os passageiros se fodam. (Com um SOS para casos extremos). Que o motorista se foda. (Me ligue em urgências). Eu abro a janela e deixo o vento bater. Mas o vento acabou. O vento acabou, Doutor. Foi embora levando as pipas do céu.

Tumtumtum.

Doutor, o que eu faço com tudo isso dentro de mim?

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Fernando Salles
Revista Transversal

Fernando escreve, fotografa, dirige, chora, advinha e passa raiva